quarta-feira, 23 de abril de 2014

Os cartazes de Itajaí

O fato: o aparecimento de cartazes que homenageiam o aniversário de Adolf Hitler (20 de abril) em um poste no Centro de Itajaí, ao lado da praça da Igreja Matriz.

Um grande amigo, o Douglas, da Carta Capital, com quem tenho o prazer de dividir a amizade e o ativismo em Direitos humanos, há tempos,  citou minha pesquisa e uma entrevista acerca do tema, sobre a questão. Agradeço.
Com ele e com a Carta Capital, e com outros veículos de imprensa, muito selecionadamente ainda falo acerca do tema de minha pesquisa. Com outros não.
Primeiro, porque, na imensa demanda por excitação que parece tomar conta da economia dos bens de informação, a imprensa desse país parece-me de enlouquecida a completamente delirante, por vezes. E tenho visto coisas absurdas  sobre o tema: gente questionando o número de neonazistas, pelo número de líderes nazis presos.
Seria como questionar o número de usuários de drogas pelo número de traficantes em regime de detenção. Obviamente, os que baixam, estudam e se identificam com literatura neonazista, são muito mas numerosos, infelizmente, do que aqueles que podemos julgar pelo crime de neonazismo tipificado claramente pela lei denominada de Lei do Crime Racial (Lei 7716/89, de 5 de janeiro de 1989).
O neonazismo é algo muito complexo. No Brasil, ele tem um tom separatista no sul, caça gays em São Paulo, faz apologia ao estupro corretivo de lésbicas e persegue os nordestinos.  Odeia, como em todo mundo, imigrantes, negros, judeus. Acredita que a História da segunda Guerra precisa ser recontada, e Hitler ser reconfigurado como um herói.
Uma vez, andando na paulista reclamei com um guarda de um grupo que trazia uma imensa faixa de Brasil nazista. Com a suástica imensa da faixa, que devia ter uns 5 metros, o grupo não deixava muita dúvida, quatro carecas tatuados com 14 e 88, os números chaves/símbolos (o primeiro se refere a um slogam criado por David lane, acerca da preservação racial, as 14 palavras, e o segundo refere-se a oitava letra do alfabeto, o H, e simboliza o Heil Hitler), e outros rapazes e moças.
Os guardas disseram que não viam apologia ao nazismo. Fiquei esperando que eles começassem a cantar o hino de WEIMAR… Se aquilo não era apologia o que seria? O hino?
Os cartazes de Itajaí falam de que Hitler ainda é comemorado, por células  espalhadas no mundo, no Brasil. Células neonazistas, que sonham com a pátria branca. O que desejo não é dar entrevistas sobre isso, mas é falar, um dia sobre sua extinção e comemorar, enfim a diversidade humana, por todos aceita, com todos.  Paz na terra.

Lei do Crime Racial (Lei 7716/89, de 5 de janeiro de 1989). 

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de um a três anos e multa.(Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
- o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; (Redação dada pela Lei nº 12.735, de 2012)
III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores. (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)
§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

sábado, 19 de abril de 2014

Um filme marcante, uma análise perfeita.

Hoje eu vou postar uma análise muito bem feita do blog Crítica (non)sense da 7Arte, cuja fonte está originalmente em http://moviesense.wordpress.com/2013/10/11/lore/.
Vi o filme ontem com Marcelo, e sem dúvida, a crítica está perfeita, sem os comentários absurdos que achei pela rede, que nem vou replicar aqui, desde negacionistas de plantão até gente que não consegue compreender que andar 900 km numa floresta na década de 40, co  outros irmãos pequenas é uma tarefa épica. Sinto, mas a mediocridade me incomoda. Não a ignorância, que esta tem jeito: livros e informação. Mas, o medíocre, aquele que acha q tem razão, baseando-se numa "opinião" dada pelo preconceito fomentado pelo refratarismo, sinto, não tenho tempo, nem paciência.
Vamos ao filme?

lore2
Uma época trágica, de grande sacrifício e perdas sempre tem muitas histórias impressionantes. Algumas contadas com muito mais frequência que outras. Lore é um destes filmes que conta algumas destas histórias menos conhecidas. Normalmente, quando lembramos do final da Segunda Guerra Mundial, somos apresentados a histórias de guerra heroicas, ou sobre algum sacrifício envolvendo a sobrevivência de judeus. Mas o que aconteceu com os filhos de alemães que se envolveram diretamente com o nazismo? Esta história pouco ou nada contada é o foco desta produção impressionante.
A HISTÓRIA: Enquanto toma banho e penteia o cabelo de forma enérgica, Lore (Saskia Rosendahl) conta os passos de um jogo de amarelinha que leva do inferno até o céu. A irmã dela, Liesel (Nele Trebs) está brincando, fora de casa, quando o cão da família começa a latir. Elas estão na Alemanha nazista. Lore olha pela janela, e vê que um caminhão do Exército alemão chegou. Descendo a escada, ouve a mãe, Asta (Ursina Lardi), e o pai, Peter (Hans-Jochen Wagner), conversando. Ele diz que eles poderão levar apenas o que couber no caminhão. Asta não parece satisfeita. Em pouco tempo, Lore, Liesel, os gêmeos Gunter (André Frid) e Jürgen (Mika Seidel) e o bebê Peter (Nick Holaschke) fogem com a mãe. Este será apenas o início do calvário desta família de alemães no final da Segunda Guerra Mundial.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes deste filme, por isso eu recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Lore): Uma ótima direção se percebe nos detalhes, em cada escolha de cena e no estilo da narrativa. Por isso mesmo, o trabalho da diretora Cate Shortland chamou a minha atenção logo nos primeiros minutos, com os enquadramentos e os cortes da narrativa diferenciados, poéticos, belos e rítmicos que mostravam o cotidiano de Lore e da família dela.
Esta característica no trabalho de Shortland se mantém durante todo o filme. Em vários momentos o espectador é surpreendido com um ângulo diferenciado, o foco em um detalhe da cena ou na interpretação dos ótimos atores envolvidos. Mas apenas uma ótima direção não é suficiente para fazer um grande filme. É peça fundamental também o roteiro. E Lore, para a nossa alegria, tem um trabalho primoroso de Shortland com Robin Mukherjee, que trabalharam sobre uma das três histórias contadas no livro The Dark Room, de Rachel Seiffert.
Mergulhamos na vida da família da protagonista quando eles devem abandonar a casa da família porque o Terceiro Reich está por um triz. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Esses momentos de ruptura sempre guardam uma força narrativa impressionante. Ainda mais quando não se trata da ruptura na vida de apenas uma pessoa. Mas, neste caso, de uma família e de uma nação. Quando Shortland escolhe acompanhar de perto, muito perto a Lore, que rapidamente acaba virando a líder daquela família de alemães, ela convida o espectador a ficar tão perplexo quanto aqueles “inocentes” personagens sobre tudo o que vai se descortinar aos poucos à frente de seus olhos.
A alegoria deste filme é envolvente e fascinante. Normalmente, como eu disse lá no início, somos apresentados às histórias das principais vítimas do extermínio nazista. Principalmente ao drama dos judeus. Ou então à histórias de heróis de guerra. Todas elas muito importantes, não tenho dúvida alguma. Especialmente a das vítimas do regime nazista. Afinal, só mesmo fazendo o registro histórico daqueles fatos absurdos e volta e meia relembrando o que aconteceu para tentar não repetir os mesmos erros. Ainda assim, eu sempre tive uma grande curiosidade para saber mais sobre a história menos contada.
E ela envolve o povo alemão. Alguns filmes abordaram esta ótica da história, mas eles são pouco frequentes – um exemplo relativamente recente foi Good, que tem uma crítica aqui no blog. Desde que comecei a estudar sobre a II Guerra Mundial na escola, sempre quis saber mais sobre a ótica dos alemães. Afinal, como eles permitiram que um regime como o nazista fizesse os absurdos que fez? A maioria sabia o que estava acontecendo, de fato, incluindo os campos de extermínio, ou eram enganados pela eficaz propaganda nazista? Quantos se preocupavam mais com o êxito econômico do regime e ignoravam, propositalmente, a “limpa racial” que acontecia paralelamente?
Nunca tive respostas satisfatórias para estas perguntas. E por mais que a Alemanha tenha se recuperado muito bem da divisão do país e de todas as sanções que vieram após o fim da guerra, é evidente que as cicatrizes naquele país continuam abertas. Pois bem, Lore ajuda a contar um pouco desta história menos conhecida. Através da história ficcional de Lore e de sua família, acompanhamos a luta pela sobrevivência dos herdeiros de um comandante nazista, responsável pela operação em um dos vários campos de extermínio.
Apesar de ser uma ficção, este filme tem uma história muito convincente e que, quem sabe, não guarda um bom paralelo na vida real? Para mim, uma das características mais marcantes do filme é que temos uma divisão fundamental entre os adultos e as crianças desta história. A maioria dos velhos sabia muito bem o que estava acontecendo, e lamentaram a morte de Hitler e o fim da Alemanha como eles conheciam. Mas os jovens e as crianças viviam na ignorância, acreditando na história que os seus familiares contavam – e nestas histórias, claro, Hitler era um semi-deus, perfeito, e não havia nada de horror nazista.
Desta forma, a trajetória de Lore e de seus irmãos, com tudo o que acontece ao redor deles, nos leva pelas mãos para mergulhar na transição entre a alegoria da infância e da inocência/ignorância para a passagem para a vida adulta e para o confronto com a dura realidade, seus crimes e imperfeições. Nem todas as crianças passam pelo mesmo choque, ou conseguem ter a mesma leitura da realidade. O que parece ter acontecido com a população da Alemanha que acaba sendo dividida em diversos setores.
Quando Asta decide deixar os filhos e recomenda que Lore procure a avó deles, perto de Husum, no Norte da Alemanha, quase na fronteira com a Dinamarca, ela faz isso antes que os Aliados a encontrem. Ela sabe que será presa e que os seus filhos serão levados, ou ficarão desprotegidos. Certo que o abandono de Asta também não ajuda nada aos filhos. Pelo contrário.
Impressionante a força da protagonista, interpretada pela fantástica Saskia Rosendahl, para levar a família adiante. E ela também tem sorte. Sim, porque se não tivesse encontrado pelo caminho a Thomas (Kai-Peter Malina), dificilmente Lore e os irmãos teriam chegado tão longe. E a aparição daquele jovem na história apenas torna ela mais interessante, criando a tensão sexual e o perigo constante que fazem o espectador esperar pelo pior a qualquer momento.
Lore encontra Thomas em uma casa onde, bem próximo dali, uma mulher havia sido estuprada e morta. Ele seria o culpado? Esta pergunta ficou na minha mente a partir de então. Rapaz de poucas palavras, mas de olhar fixo em Lore, Thomas é uma incógnita. Até que começa a defender aquela família – para, ele também, é preciso dizer, seguir adiante. Mas não sabemos até quando aquela paz aparente entre filhos de alemães e um judeu sobrevivente vai persistir.
A impressão que o roteiro nos dá é que a missão que Lore recebe da mãe é bastante absurda. Logo no início eu tive a impressão de que ela praticamente teve que cruzar o país carregando os irmãos. Quando a avó pergunta para Lore de onde eles estavam vindo, ela diz que eles tinham saído da Floresta Negra. Pois bem, procurando a distância entre a Floresta Negra, que fica no Sul da Alemanha, perto da Suíça, e a cidade de Husum que, como eu disse antes, fica ao Norte, vi que a protagonista desta história percorreu uma distância que hoje é medida entre 880 quilômetros e 930 quilômetros – dependendo da rota adotada. Imaginaram fazer boa parte desta distância à pé e sem dinheiro?
Neste caminho, a protagonista e os demais personagens nos apresentam a realidade da Alemanha logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Havia muita fome, violência, mortes e controle do movimento e da vida das pessoas. O país foi dividido entre os vencedores, e os alemães eram vistos com desconfiança. Quem teve ligação com o regime nazista foi perseguido, julgado, morto ou exilado. Claro que as pessoas ligadas ao nazismo cometeram absurdos, mas será mesmo que todos os alemães podiam ser considerados culpados pelo que aconteceu?
Interessante, e o filme mostra bem isso, que os próprios alemães se tratavam de forma desigual. Fica evidente que muitos adultos, que provavelmente discordavam dos caminhos da ditadura de Hitler, passaram a tratar com desconfiança os seus pares com o fim da guerra. Quando descobriam a ligação das pessoas com o regime, como é o caso dos camponeses que vivem perto da família quando ela se refugia após sair de casa, reagem com repúdio e discriminação. Sob esta ótica, a história do filme sugere que nem todos pensavam igual na Alemanha nazista. E o clima que percebemos, com o fim da guerra, é de “cada um por si e salve-se quem puder”.
Havia alguma solidariedade, como os centros para ajuda onde as pessoas podiam tomar banho e pegar alguma comida, mostrado quase no meio do filme. Mas esta “solidariedade” era acompanhada de uma exigência: os alemães deveriam olhar várias fotos que mostravam o Holocausto. E aí outra parte do roteiro interessante: a reação de muitas pessoas que, mesmo colocadas frente ao inevitável, seguiam negando que aquilo havia ocorrido. Algo que continua até hoje – a incrível negação da realidade abominável daqueles anos.
Neste momento do filme, Lore vê pela primeira vez a história perfeita contada por sua família começar a ruir. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Ela acredita que identificou o pai em uma foto de um campo de extermínio. Mais tarde, ao confirmar a impressão, ela se desfaz das “provas”. E vive o conflito que muitos alemães viveriam naqueles anos e nas gerações seguintes: afinal, em que história eles deveriam acreditar? No caso de Lore, naquela que a mãe e o pai sempre lhe contaram, ou naquela que ela começa a perceber ao ter que cruzar a Alemanha carregando os irmãos?
Quando Lore percebe que o caminho deles acaba ficando quase impossível de ser separado do de Thomas, as dúvidas apenas crescem. Afinal, ele é um judeu, um parasita, enganador, conforme ela sempre aprendeu em casa. Evidente que a garota sente atração e repúdio em relação a ele, em uma mistura entre o que ela aprendeu até então e a sua nova fase, de entrada na vida adulta. Ao mesmo tempo, me impressionou a atitude de Thomas, de ajudar Lore e aos irmãos, mesmo eles sendo “inimigos”.
E aí surge uma das reflexões do filme. Afinal, aqueles descendentes de nazistas mereciam ser punidos? Thomas deveria se vingar deles pelo que os pais haviam feito? Evidente que não. Mas daí a ajudá-los por tanto tempo… acabei temendo pelo que pudesse acontecer no final da história. Na dúvida se ele estava fazendo aquilo por altruísmo ou com alguma intenção ruim bem camuflada.
Mas voltando para a peregrinação de Lore, que também foi sentimental e filosófica – mais que apenas de uma longa viagem. Em um certo momento do filme, na troca de diálogos mais poderosa do roteiro, quando Thomas está ameaçando ir embora, a protagonista lhe confronta dizendo que ele é um mentiroso compulsivo, que não consegue evitar a mentira. Inicialmente ela atribui as mentiras aos judeus – afinal, ele é um deles. Mas depois, comenta que elas estão por toda a parte. Bingo! Esta é a leitura que Lore faz a duras penas. E tanto ela, quanto Thomas e nós, sabemos que ela não está se referindo apenas aos judeus, mas a todas as mentiras que pairam naquela Alemanha que ela não conhecia.
Pouco depois, temos uma outra grande surpresa no roteiro – ela não seria a primeira, e nem a mais forte delas. Quando descobrimos que Thomas andava com documentos que não eram dele, uma série de perguntas para as quais nunca teremos respostas se abrem. Afinal, ele não era realmente judeu? Ou ele era judeu e apenas andava com os documentos de outro homem? Não é a impressão que Jürgen passa quando conta a Lore que o rapaz usava documentos de um judeu porque os americanos gostavam deles. Mas se ele não era judeu, porque havia sido preso? Sim, porque ele tinha no braço os números de quem havia passado por um campo de concentração. Se ele não havia sido preso porque era judeu, ele fazia parte de que grupo de perseguidos? Nunca saberemos.
Mas esta revelação abre um precedente de dúvidas interessante. Toda a generosidade que Thomas parecia ter sido capaz de fazer, como judeu, ajudando a filhos de alemães que haviam perseguido o seu povo, poderia ser falsa. Talvez ele fosse um comunista, ou um homossexual – por isso ele havia rejeitado Lore? Não importa. E talvez seja essa uma das principais mensagens deste filme. Tanto ninguém deveria ser perseguido por ter uma determinada característica, como a generosidade que aquele rapaz é capaz de ter não deve ser atribuída a um determinado grupo. As pessoas sempre são responsáveis pelos seus atos, e tem escolhas para fazer.
Sei que me alonguei demais, desta vez, mas achei este filme fascinante. E se a narrativa inteira é cheia de belas imagens, um ótimo ritmo, desempenhos marcantes dos atores e reviravoltas importantes, o que dizer do final de Lore? Achei simplesmente perfeito. Depois que ela e os irmãos tem uma perda terrível e chegam em “local seguro”, a avó deles (Eva-Maria Hagen) segue querendo seguir com os mesmos valores e a educação de antes. E afirma que os netos não devem pensar que os pais deles fizeram qualquer coisa de errado – pensamento que muitos alemães tinham após a guerra e que muitos seguiram tendo depois. Mas tudo tinha mudado.
Lore, Liesel e Jürgen não eram mais os mesmos, assim como as novas gerações daquele país. Eles estão cansados de mentiras e de regras que não valem mais. E esse sentimento de fúria e indignação não poderia ser melhor exemplificado do que na destruição que Lore faz no quarto com aqueles símbolos de um passado que tinha chegado ao fim. Genial.
NOTA: 10.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Tudo funciona bem neste filme. Antes, elogiei a direção diferenciada de Cate Shortland e o roteiro bem escrito e envolvente escrito por ela e Robin Mukherjee. Pois bem, mas estes são apenas alguns fatores fundamentais para Lore dar certo. Devemos acrescentar à lista a ótima, detalhista e poética direção de fotografia de Adam Arkapaw; a clássica, envolvente e emocionante trilha sonora de Max Richter; e a precisa e irretocável edição de Veronika Jenet.
Por tratar-se de um filme de época, Lore precisa que outros elementos técnicos funcionem bem para transportar o espectador para o tempo da história. Então merece ser citado o excelente trabalho de Silke Fischer e Jochen Dehn no design de produção; novamente Jochen Dehn, mas agora na direção de arte; e o de Stefanie Bieker nos figurinos. Outro aspecto técnico bem preciso, sem exageros, e que acaba tendo uma importância grande nesta produção é o da equipe de maquiagem coordenada por Ulrike BorrmannAntje Dahm e Kathrin Westerhausen.
Fiquei tão fascinada com este filme que eu quis saber um pouco mais sobre o livro The Dark Room, de Rachel Seiffert, que inspirou o roteiro de Lore. Encontrei neste texto do The Guardian algumas informações sobre a obra. Soube, por exemplo, que The Dark Room narra três histórias diferentes ligadas pela narrativa da “perda da inocência de uma nação”. A primeira envolve um jovem alemão, Helmut, com idade para servir o exército, muito patriota, mas que é incapaz de se juntar às tropas porque tem uma paralisia parcial em um dos braços. A segunda história é a de Lore e seus irmãos. E a terceira foca Michael, um professor que vive 50 anos após o fim da guerra e que fica dividido entre o resgate do passado do avô e a falta de culpa dos alunos pelo que foi feito no passado.
Assim como me interessei por The Dark Room, procurei saber mais sobre esta incrível diretora Cate Shortland. Pois bem, ela é australiana e tem 45 anos. Estreou na direção em 1998 com o curta Pentuphouse. Depois, ela dirigiria outros dois curtas e capítulos de duas séries de TV antes de estrear no comando de um longa-metragem. Essa estreia em longas ocorreu em 2004 com Somersault, um filme que eu não assisti mas que, pelo que eu li rapidamente, aborda amor e sexo. Dois anos depois, surgiria The Silence, um filme feito para a TV e, no ano passado, este Lore.
Outro nome que me impressionou neste filme foi o da protagonista Saskia Rosendahl. E o mais incrível: Lore foi o seu primeiro papel no cinema! Uau!! Depois desta estreia, a atriz que fala alemão, inglês e espanhol e sabe tocar violão participou de outras quatro produções, sendo uma delas feita para a TV. Além dela, achei excelente o trabalho de Kai-Peter Malina como Thomas. Os dois ajudam a sustentar o filme.
Lore estreou no Festival Internacional de Cinema de Sydney em junho de 2012. Depois, o filme participaria de outros 21 festivais. Número impressionante. Nesta trajetória, ele ganhou 17 prêmios e foi indicado a outros 23. Entre os prêmios que recebeu, destaque para os de Melhor Diretora para Cate Shortland e Melhor Atuação de um Jovem Ator para Saskia Rosendahl conferidos pelo Círculo de Críticos de Cinema da Austrália; Melhor Filme segundo os críticos do Festival de Cinema de Hamburgo; Prêmio do Público para Cate Shortland no Festival Internacional de Cinema de Locarno; Melhor Atriz para Saskia Rosendahl, Melhor Direção de Fotografia, Melhor Trilha Sonora e Melhor Filme no Festilva de Cinema de Estocolmo; e Melhor Novo Diretor para Cate Shortland no Festival Internacional de Cinema de Valladolid. Só para citar os principais.
Falando em prêmios, Lore foi o indicado da Austrália para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na edição 2013. Mas não chegou até a lista dos cinco finalistas. Lembrando quem chegou na reta final: AmourNoRebelleEn Kongelig Affaere e Kon-Tiki. Destes, assisti apenas ao premiado Amour e também a Kon-Tiki. Amour, de fato, é maravilhoso. Mas entre Lore e Kon-Tiki, sem dúvida prefiro o primeiro. Assim, posso dizer que foi uma pena o filme, que é uma coprodução da Austrália, Alemanha e Reino Unido, não ter chegado até a lista de finalistas do Oscar.
Lore teria custado 4,3 milhões de euros e faturado, nas bilheterias dos Estados Unidos, quase US$ 969 mil. E na Austrália, pouco mais de 296,5 mil dólares australianos. Tem que ver o desempenho no restante dos mercados, acumulado. Mas os dados disponíveis são preocupantes e mostram que o filme pode não ter lucro.
Apesar de ser uma produção de três países, Lore foi totalmente rodado na Alemanha, em diferentes cidades.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7 para Lore. Uma boa avaliação para o padrão do site, mas nada muito excepcional. Os críticos que tem os textos linkados no Rotten Tomatoesdedicaram 92 textos positivos e sete negativos para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 93% e uma nota média de 7,6. Poucas vezes vi os críticos darem uma nota melhor que o público. Esta é uma destas ocasiões.
Encontrei dois cartazes de Lore. E admito que fiquei em dúvida por bastante tempo sobre qual eu deveria colocar aqui. Escolhi o que abre esta crítica, mas admito que gostei muito do outro também. Oh, dúvida cruel! Acabei escolhendo o cartaz alemão, mas o que foi para os Estados Unidos era mais impactante. Só que como trazia a bandeira nazista, poderia dar a impressão que era algum tipo de “propaganda”. Talvez por isso que o filme não tenha se saído também nos EUA.
CONCLUSÃO: Saber mais sobre o nosso passado é algo fundamental. Não apenas para entender como chegamos até aqui, mas também para aprender com os erros e com a dor para que eles não se repitam mais. E por mais que você achei que não tem nada a ver com a Alemanha nazista, toda a civilização moderna foi influenciada em maior ou menor grau por aqueles fatos. Por isso mesmo, acho tão impressionante quando um filme como Lore tem a coragem de voltar atrás na história para fazer um libelo impressionante sobre marcas que aquela época deixou em pessoas inocentes.
Filmes históricos sempre valem a pena. Especialmente quando tem como característica principal resgatar a vida de pessoas comuns e o que elas aprenderam com a dura realidade que viveram. Lore tem uma história impressionante, na qual não sobra nenhuma linha – seja de diálogos, seja da narrativa. Muito bem dirigido e com ótimos atores, este filme é um libelo a um futuro sem os absurdos que vivemos em diversas fases do passado. Imperdível.

terça-feira, 18 de março de 2014

A luta da juventude, a nossa luta

 Há alguns meses atrás eu fiz comentários acerca das passeatas que mobilizaram o país e de como, em São Paulo, o umbigo e cabeça da extrema direita e do pensamento fascistóide do país elementos tentaram se aproveitar das ruas para dar voz a suas palavras de ordem grotescas, metralhar palavras preconceituosas e pautar uma juventude que ainda não sabe o que não quer, mas sabe exatamente o que não quer. 

O que a direita teta disputar é essa juventude. A nossa juventude, essa que não teve acesso a sociologia, nem filosofia no dito Ensino Médio, que cresceu num país com inflação controlada, que pode ir para as ruas (QUE BOM!!!!!!!!) gritar, desconhece de memória, o que é um país com descontrole inflacionário (fruto da melagomania da economia da ditadura), o que é desemprego em massa. SEM ESTA MEMÓRIA A JUVENTUDE SE VÊ À DERIVA, DISPUTADA PELA GRANDE MÍDIA, que cumpre fielmente o papel de porta-voz da direita.


A juventude brasileira é muito bem intencionada, mas foi pra rua com slogan de  comercial da FIAT, o VEM PRA RUA, e falando o que repetia, do Jornal da Globo ao Bom dia São Paulo, e não o contrário. Ela usa facebook até dormindo, e foi lá que ela marcou com a turma de ir pras ruas em junho. Ela se cansou da velha fórmula de partidos que não ouvem, de uma política que dialoga verticalmente. 


A JUVENTUDE OPERA EM REDE. ELA SE ADEQUA ÀS REDES pq ela PENSA, VIVE, REPIRA REDES.  Ou pra quem leu WEBER, em esferas, se vcs preferem uma teoria mais clássica...

A juventude opera em rede, em redes, nas redes.

E precisamos ouvir essa juventude. A direita está disputando-a. Nós precisamos ouvi-la. Não disputá-la, mas dar lugar a ela, no futuro, no projeto. Lutar com ela. Sonhar com ela. 

Ela quer um sistema que não oprima o negro, a mulher, a pessoa com deficiência. As passeatas tinham cartazes muito, mas muito progressistas, mas a mídia não mostrou. A MÍDIA SÓ MOSTRA O QUE QUER, SÓ PAUTA O QUE DESEJA.

Eu acabei de chegar do julgamento de Tiradentes, e vi milhares de jovens, sentados no chão do lado de fora de uma PUC LOTADA, assistindo pelo telão, as narrativas da luta contra a ditadura.

A juventude nunca desiste. E o que mantem a juventude na resistência, e na luta é a força das narrativas das lutas, de todos os tempos. Eu sempre amei profundamente a força das narrativas, sua força política, sua força de luta, sua força em manter viva a história da luta, as pessoas da luta, ainda que mortas na luta. Deixar de narrar um luta é deixar a luta morrer.

  Durante a ditadura militar uma grande luta aconteceu neste país. Uma luta que eu não presenciei como adulta, mas que eu conheci pela narrativa de outras gerações, e uma luta que eu sempre tive o respeito de preservar. Que eu vivi de outra forma.

 Era um tempo difícil, e lidar com o regime de exceção parecia aos que lutavam imperioso. Muitos deram sua vida pela liberdade, pela democracia. O tempo desta luta era duro, era um tempo ocre, com cheiro de granada, eu imagino, com cheiro de repressão, de imprensa censurada, de prisões a domicílio, de lares desfeitos, de pessoas desaparecidas. Um tempo de dor e de luto.

Hoje, dizem, vivemos outros tempos. Hoje, digo, vivemos outras lutas. A imprensa não é censurada, é cínica. O regime não é de exceção é de exclusão. As pessoas não são presas, são caluniadas.

A vocês que lutaram a luta do seu tempo, peço: nos ajudem com a luta do nosso: nossos direitos civis, de  milhares de pessoas com deficiência, doenças raras, LGBTTs, indígenas, quilombolas, idosos,   populações ribeirinhas e camponesas, entre outras dezenas de minorias, são constantemente violentados. Vamos à luta, à rua, todos. Vamos nos manter juntos, dos jovens e de suas pautas, preciosíssimas. Esse é o nosso tempo, essa é a nossa luta.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O racismo em números


A esmagadora maioria dos beneficiários do Brasil Sem Miséria é de negros, comprova levantamento do governo federal
Vladimir Platonow/ABr
Racismo
Eis a população mais vulnerável
Quando publicou Casa-Grande & Senzala em 1933, Gilberto Freyre não tinha a seu dispor um grande volume de dados sociológicos sobre a população brasileira. O IBGE foi criado um ano depois e o Ipea apenas na década de 1960. Se tivesse acesso a pesquisas que comprovassem a relação intrínseca entre pobreza e cor de pele no Brasil, hoje abundantes, talvez sua teoria da democracia racial brasileira fosse um pouco diferente. Ao ser confrontado com as estatísticas, o racismo brasileiro, sustentado em três séculos de escravidão, desvela-se como uma verdade factual.
A conexão entre a miséria e a origem racial é tão definitiva no País que programas de transferência de renda destinados a eliminar a extrema pobreza só poderiam fazê-lo ao beneficiar os negros, mesmo sem adotarem políticas afirmativas de raça. Na quinta-feira 19, a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, divulgou um trabalho de decomposição dos beneficiários do Brasil Sem Miséria, que inclui o Bolsa Família, o Brasil Carinhoso e o Pronatec, entre outros. Cerca de três quartos dos beneficiados, mostra o levantamento, são negros.
No início do Brasil Sem Miséria, em 2011, criado para alcançar a parcela da população apta a receber benefícios mas ainda não registrada no Cadastro Único, o ministério almejava incluir cerca de 16 milhões de brasileiros em situação de extrema pobreza. Segundo o IBGE, 71% eram pretos ou pardos à época. Natural, portanto, a pesquisa de 2013 revelar que os maiores beneficiados pelas políticas de transferência de renda têm a pele escura. De acordo com os dados divulgados por Tereza Campello, 73% dos cadastrados no Bolsa Família são pretos ou pardos autodeclarados. Em relação a outros benefícios, a proporção é ainda maior.
Segundo a ministra, os dados são consequência da desigualdade racial no Brasil. “Embora não exerçamos uma política afirmativa de convocar os negros, eles acabam mais favorecidos por serem os mais vulneráveis”, comenta. “Estamos em uma luta aberta contra a discriminação dos pobres. Assim como alguns chamavam os escravos no Brasil de preguiçosos, muitos falam o mesmo de quem recebe benefícios do governo. Ao lutar contra o preconceito em relação aos pobres, construímos uma trajetória de cidadania para a população mais necessitada, de maioria negra.”
Embora o Bolsa Família não se paute por uma política de afirmação racial, há outros fatores que estimulam um número maior de negros atendidos. O estudo Vozes da Nova Classe Média, realizado pelo Ipea neste ano, indicou que, ao declarar-se preto, as chances de um candidato obter o benefício aumentam em 10%. Segundo a ministra, trata-se quase de um “preconceito invertido”. “Quando alguém vai fazer seu cadastro no Bolsa Família, a rede de assistência social tenta aferir o máximo possível de informações sobre a renda de um candidato. Se uma pessoa toda produzida, loira e de olho azul for pedir o benefício, a chance de levantar suspeição é maior. É mais crível quando um negro pede o benefício, pois quem analisa realmente acredita no grau de vulnerabilidade.”
Um dado bastante comemorado pelo ministério é a parcela de 65% de negros entre os matriculados no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego. O fim da exigência de nível médio para alguns cursos profissionalizantes, ressalta a ministra, e uma melhora na divulgação foram responsáveis pelo alto número de negros contemplados. “Boa parte das vagas era ofertada no Sebrae, Senai e Sesc, que chegavam mais no trabalhador formal. Agora oferecemos os cursos do Pronatec nos centros de referência de assistência social, localizados em geral em bairros e vilas populares.”
Quanto mais específico é o programa social, maior o número de negros beneficiados. Em relação ao Brasil Carinhoso, que atende famílias com filhos de até 15 anos de idade, a proporção de pretos ou pardos chega a 77%. O número pode ser explicado pela taxa de fecundidade. Segundo um estudo do Ipea de 2011, enquanto entre os negros a média de filhos por mulher é de 2,1, na população branca é de 1,6.

Nos programas direcionados à população rural, a proporção de negros atendidos é ainda mais alta, consequência de sua maior concentração no campo. Nas cidades, 48% da população é negra, e no meio rural, 61%. Os programas Água para Todos e o Fomento às Atividades Produtivas têm entre seus beneficiados quase 80% de negros. No caso do Bolsa Verde, que complementa a renda de quem adota práticas sustentáveis, chega a 92%.
A iniciativa de estender o Bolsa Família às comunidades quilombolas é o que mais se aproxima de uma política afirmativa no Brasil Sem Miséria. Segundo o ministério, há 2.197 comunidades quilombolas reconhecidas, com uma população estimada de 1,17 milhão de indivíduos.
Símbolo da resistência contra as senzalas, os quilombos perderam sua condição original de esconderijos de escravos fugidos do cativeiro. Mas a miséria e o alto nível de desnutrição infantil expõem os efeitos duradouros da escravidão. Por causa da distância e do isolamento, o governo tem desenvolvido formas alternativas de atuação. “Nas versões antigas do Cadastro Único, não eram feitas perguntas sobre públicos diferenciados. Agora conseguimos beneficiar ciganos e quilombolas mesmo sem endereço fixo”, diz Tereza Campello. Hoje são 261,5 mil quilombolas autodeclarados inscritos no Bolsa Família.