terça-feira, 2 de outubro de 2018

Despedida

Com a defesa do meu doutorado, fica aqui a minha despedida do blog. Aliás desde 2009, venho muito pouco aqui, dedicada que estava ao trabalho de pesquisa e aos comitês que coordeno na ABA e ANPOCS.

2009 foi um ano supermarcante, pois tive meu trabalho reconhecido e publicado pela Polícia Federal, no jornal dos ANAIS do Congresso de Peritos em Segurança Cibernética de 2008, e dei um curso, junto com o MPF, no ano seguinte. Isso aconteceu depois de meu trabalho ser exposto em Israel, quando numa conferência da LAJSA meu trabalho foi super comentado e elogiado por professores da Universidade de Tel Aviv e Jerusalem. 

A única voz crítica continua sendo do professor que nunca leu meus dados de banco de dados, e que não sabe a diferença entre busca no google e métrica de pagerank. Por mais que me digam para processá-lo, fico pensando se alguém pode ser processado por ignorância (lógico que poderia processá-lo por suas mentiras e difamações), mas ele é tão ignorante que dói.

Desde março enfrento como os mais próximos sabem um câncer na vida de quem amo muito.  Então, preciso reduzir algumas coisas, para ter tempo. E nessas resoluções, fechar esse blog, é minha decisão no momento. Ainda não sei se vou tirar do ar, mas não vou mais alimentar. 

Abraços fraternos. 

Doutorado

Como vocês devem saber, defendi meu doutorado na Unicamp.
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2018/09/28/um-mergulho-no-universo-neonazista
Audiodescrição: Em área externa, imagem em perspectiva, de costas e em plano médio, grupo de cerca de quinze homens caminha em passeata por rua, da direita para a esquerda, sendo que cinco deles carregam bandeiras de tecido em pequenos mastros apoiados nos ombros, deixando as bandeiras nas costas. São bandeiras diferentes, uma com símbolo nazista, uma amarela, e três dos Estados Confederados dos Estados Unidos, com fundo vermelho e uma cruz azul preenchida com treze estrelas brancas alinhadas. imagem 1 de 1

Um mergulho no universo neonazista

A partir de estudo etnográfico e da biografia do “Hitler americano”, antropóloga detalha as conexões do movimento em escala global, inclusive no Brasil
   
Observando o ódio é o título da tese de doutorado que marca mais de 15 anos de pesquisas da antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias junto a sites, blogs, fóruns e comunidades neonazistas na rede mundial de computadores, e em documentos e atividades não digitais. Ela buscou, basicamente, descrever o que pensam esses extremistas de direita, como cultivam o ódio e as suas formas de ação. O subtítulo “Entre uma etnografia do neonazismo e a biografia de David Lane” denota o foco, nesta tese, no líder chamado de “Hitler americano” e “Herói da guerra racial”, em seu papel na formação do atual estágio do neonazismo nos Estados Unidos e no mundo, na repercussão do movimento no Brasil e em como a obra do biografado vem sendo usada para formatar uma união da extrema direita no âmbito global.
Reprodução“Em 2002, quando comecei a pesquisar a extrema direita no Brasil e no mundo, as pessoas não viam sentido nesse esforço, porque não acreditavam na existência de um movimento neonazista. Infelizmente, os dados apontaram para um caminho que se mostrou verdadeiro. Agora as pessoas estão muito conscientes de que o fenômeno existe”, recorda Adriana Dias, que foi orientada pela professora Suely Kofes, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. “No meu mestrado em 2007, a situação já estava muito mais grave do que quando iniciei as pesquisas. E, hoje, vivemos o que considero um tsunami do movimento da direita.”
A antropóloga esclarece que o meio digital a favorece, por ser também programadora, tendo facilidade para lidar com banco de dados, softwares e redes. Mas ela própria custou a acreditar nos números. “Sou muito exigente com meus dados e, na primeira vez que os vi, achei que estavam mentindo, que não era possível o fenômeno ser tão grande. Levantei números de sites, postagens, downloads em redes, inscritos e postagens em fóruns, integrantes em comunidades como Facebook e Twitter. Há uma postagem antissemita no Twitter a cada quatro segundos; uma postagem em português contra negros, pessoas com deficiência e LGBTs a cada 8 segundos. David Lane, mesmo morto, recebe um mínimo de 500 tweets por dia – e em dias especiais, como do seu aniversário ou da morte, o número atinge milhões.”
Justamente para ter certeza dos números, Adriana Dias trabalhou com muitas ferramentas, várias delas pouco conhecidas pela antropologia, como Gephi e N*Vivo, e principalmente a rede Thor, a fim de acessar a denominada Deep Web, formada com muito material não indexado, mas onde circulam também conteúdos de outros tipos: acadêmicos, pornográficos, ativistas e criminosos, entre outros. “Trabalhei com algoritmos que buscam palavras-chave e criei ferramentas que fornecem extratos numéricos que eu não teria como manipular. Utilizei quatro ferramentas de análise quantitativa (no mestrado foram duas), sendo que uma confirma o resultado da outra. Quem mais gostaria que esses dados não existissem sou eu, mas se trata do meu objeto de pesquisa.”

Personagem central
Adriana conta que a trajetória de David Eden Lane começou na National Alliance, grupo supremacista branco formado por William Pierce, um PhD em física que havia pertencido ao Partido Nazista Americano fundado por George Rockwell. “Quando Rockwell foi assassinado por um membro do próprio partido, Pierce usou um pseudônimo para escrever O Diário de Turner, em que conta a história de um grupo de jovens que derrubaria o Estado americano através de uma série de roubos e assassinatos – e então David Lane ajudou na formação de The Order, grupo que tentou transformar a história de ficção em realidade.”
Entre os crimes praticados pela Ordem estão o assalto à transportadora de valores Brink’s, num montante que hoje equivaleria a mais de 1 milhão de dólares, e o assassinato do judeu Alan Berg, radialista de talk show e crítico da Ku Klux Klan e do Partido Nazista Americano. “A Ordem foi fundada em 1983, o assassinato ocorreu em 84 e David Lane ficou foragido até março de 85, quando acabou preso e condenado em júri, mas por assalto a banco, com base em lei antiterrorista contra aqueles que atentam contra a estabilidade do governo americano. Ele morreu na prisão em 2007, quando eu estava defendendo meu mestrado – e aí começaram a surgir inúmeros textos sobre sua morte e importância.”
A autora da tese ainda não tinha consciência do papel de liderança de Lane, mas já o conhecia por conta de 14 Palavras: “We must secure the existence of our people and a future for White Children” (Devemos assegurar a existência de nosso povo e um futuro para as Crianças Brancas), slogan que teria sido inspirado em um trecho de 88 palavras do livro Mein Kampf (Minha Luta), de Adolf Hitler. “Esse livro em que Hitler expressou suas ideias antissemitas, racistas e nacional-socialistas se tornou um guia ideológico e de ação que ainda hoje influencia os neonazistas. Li Mein Kampf  dezenas de vezes para desconstruir os textos de David Lane – não que sejam plágios, diria que as palavras são bem reinterpretadas para o contexto dos Estados Unidos, e daí o ‘Hitler americano’”. 
Ao pesquisar a vida de Lane mais profundamente para o doutorado, Adriana Dias percebeu uma série de aspectos irreais, como o seu “casamento” com Katja Lane (ou Katuscha Maddox), com a qual, na verdade, só se relacionou por cartas da prisão. “Para o movimento interessava que ele permanecesse casado, mas é fato que Katja fugiu com uma fortuna que seus livros renderam. Ela o ajudou a escrever o primeiro livro, Creed of Iron, sobre Odinismo – a crença nos deuses germânicos, sendo Odin a figura central –, em que Lane se coloca como profeta da raça ariana e prevê a chegada de um novo Cristo. Ele quis satisfazer a demanda de religiosidade e de identidade cristã na América do Norte – me refiro tanto à Identidade Cristã, grupo neonazista americano, quanto ao fato de o país ser evangélico.”
A antropóloga observa que David Lane escreve muito no limbo da duplicidade entre ele e Cristo, entre ele e Hitler, tendo seus textos principais traduzidos para 35 línguas, a ponto de todos os movimentos de extrema direita utilizar o slogan de 14 palavras. “14 Words virou símbolo e 14/88, uma sigla: 88 de ‘Heil Hitler’ (agá, agá, a oitava letra do alfabeto). São símbolos, senhas, nomes usados à exaustão, o que chega a ser desesperador, pois a impressão é de estar lendo a mesma coisa um milhão de vezes. Essa repetição à exaustão é muito semelhante ao que foi a doutrinação nazista [por Joseph Goebbels] para mecanizar o pensamento. Ao se repetir algo indefinidamente, o objetivo não é apenas criar fanatismo ou alienação, é que as pessoas parem de pensar e refletir sobre o que estão repetindo.”

Vigor da direita
ReproduçaoA autora da pesquisa afirma que os movimentos de extrema direita foram se tornando cada vez mais vigorosos a partir do discurso sobre a ameaça de genocídio branco (white genocide). “Trata-se da ameaça por parte de negros, imigrantes, povos nativos, mulheres, judeus, gays, deficientes físicos, que estão ocupando os lugares ‘naturalmente dos brancos’. O discurso é que o branco está sendo morto pelo casamento inter-racial, pela adoção de crianças negras por brancos, pelo desejo das mulheres brancas por negros e uma infinidade outras justificativas. Qualquer um que tente ocupar este lugar do branco tem que ser eliminado.”
Uma mudança recente no cenário, e que mais preocupa a pesquisadora, é a diminuição acentuada de sites de movimentos neonazistas na rede de computadores. “No meu mestrado, eram muitos os sites individuais, mas eles passaram a migrar para fóruns coletivos, que são espaços de diálogo, o que eu já via como um sinal de perigo. Depois dos diálogos vieram as alianças de movimentos. E agora temos os rallies [comícios], a exemplo do realizado no estado da Virgínia em agosto do ano passado [na cidade de Charlotessville, com centenas de manifestantes carregando tochas, fazendo saudações nazistas e gritando palavras de ordem contra negros, imigrantes, homossexuais e judeus] – ali ficou patente que os grupos de direita estão se unindo.”
De acordo com Adriana Dias, David Lane é lido no Brasil há pelo menos 20 anos, e não apenas ele, todos os líderes neonazistas são lidos. “Ocorre que, enquanto nos Estados Unidos há uma clara divisão entre os movimentos – Klan é Klan, The Order é The Order –, os movimentos daqui absorvem e misturam tudo o que é traduzido. A pessoa lê David Lane e A Ordem achando que é a mesma coisa, quando o primeiro é hitlerista clássico e o segundo um movimento neopagão. Os zines [impressos] brasileiros trazem textos de autores que se odeiam e jamais almoçariam juntos, quanto menos dividir uma publicação.”
Confusões à parte, a antropóloga identificou movimentos brasileiros bem organizados, como o Neuland (“nova” terra), liderado por Ricardo Barollo. “Conhecia o grupo, mas não sabia que Barollo era o líder, apenas que se tratava de uma pessoa de São Paulo, com perfil universitário, e que sua célula possuía em torno de 200 membros, por conta da circulação de material. Em 2009, em disputa pelo poder, ele matou o diretor de outra célula, Bernardo Dayrell (e também a namorada), criador da revista online O Martelo. Tentou culpar os judeus pelo duplo homicídio, mas acabou preso e o grupo, desbaratado. O Neuland queria eleger vereadores e prefeitos em duas cidades de Santa Catarina e do PR, e assim ir ganhando força para tomar os estados do Sul e São Paulo, em um movimento separatista.”

A construção do ódio
A pesquisadora recorre a Peter Gay, autor de O cultivo ao ódio, para explicar o pensamento e as práticas dos neonazistas, o que também ajuda a compreender o momento de intolerância em que o mundo está mergulhado. “O ódio é cultivado sobre um tripé. Em primeiro lugar está a crença na meritocracia: a ideia – resultante da má interpretação da teoria darwiniana – de que estamos em evolução e alguns mais aptos têm direitos conquistados ‘meritocraticamente’. Isso é uma farsa, pois nem todos saem do mesmo lugar. É uma falácia, por exemplo, a propaganda do governo de que, agora que existe a Base Comum Curricular, todas as crianças vão sair do mesmo lugar, quando temos a que tomou café da manhã e a outra, não; a que tem pai com salário de 40 mil e a outra com pai ganhando salário mínimo – elas saem de lugares muito diferentes.”
Reprodução
O segundo instrumento do ódio, prossegue Adriana Dias, é a construção de um “outro” conveniente, para justificar porque brancos nem sempre conseguem conquistar o melhor lugar “naturalizado”. “A explicação é que o ‘outro’ roubou o lugar dele: o outro é o gay, o negro, o imigrante, o judeu, o deficiente, que são construídos como inimigos do branco que deveria ter o lugar natural. O neonazista precisa justificar a falha do primeiro argumento construindo este segundo, sobre o outro conveniente, em que vale qualquer coisa: o judeu é culpado pela peste negra, o negro pela varíola, o deficiente físico pela degenerescência da raça branca, a mulher por ser vadia e estuprada.”
ReproduçãoA antropóloga acrescenta que é no terceiro elemento, entretanto, que o ódio se sustenta: o culto à masculinidade, vendo-se a mulher apenas como a receptora da raça, que vai dar a criança para o homem construir um novo mundo. “David Lane achava natural que os machos cacem e dominem as fêmeas; em seu último livro, propõe que os machos sequestrem as fêmeas em casamento inter-racial e as estuprem para que tenham filhos brancos. Desse culto à masculinidade vêm a homofobia, o estupro corretivo de lésbicas e a teoria de estupro histórico como arma de guerra. Lane foi cremado e 14 mulheres dividiram as cinzas depositadas em 14 urnas em forma de pirâmide – um grupo nazista ameaçou uma das mulheres de estupro porque queria as cinzas para rituais.”
Para oferecer uma ideia da dimensão do movimento, Adriana Dias informa que o Criatividade conta 10 milhões de membros no hemisfério norte, tendo sido responsável pelo grande avanço do neonazismo americano, de 500 mil para 2 a 3 milhões de adeptos. “No Brasil, creio que os simpatizantes cheguem à casa de 300 mil. E tenho medo que o Criatividade chegue ao país, por ser um movimento de cunho religioso, que não prega a ‘minha raça’ e sim a ‘minha fé’, o que atrai muita gente. O fato é que nesse longo período de pesquisa vi uma explosão do movimento de extrema direita, bem como a situação se agravar e se radicalizar. Na banca de tese me perguntaram se estamos perto de algum Estado se tornar neonazista. Não tenho ideia, pois meus dados são apenas da direita. Não sei se esse tsunami pode ser interrompido por um tsunami de esquerda.” 


Audiodescrição: Em área externa, imagem em perspectiva, de costas e em plano médio, grupo de cerca de quinze homens caminha em passeata por rua, da direita para a esquerda, sendo que cinco deles carregam bandeiras de tecido em pequenos mastros apoiados nos ombros, deixando as bandeiras nas costas. São bandeiras diferentes, uma com símbolo nazista, uma amarela, e três dos Estados Confederados dos Estados Unidos, com fundo vermelho e uma cruz azul preenchida com treze estrelas brancas alinhadas. imagem 1 de 1

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Bourdieu, sempre ele

Bourdieu continue de secouer

ARNAUD SAINT-MARTIN SOCIOLOGUE
JEUDI, 24 DÉCEMBRE, 2015
L'HUMANITÉ

bourdieu2412.jpg

Photo : Remy De La Mauviniere/AP
Le sociologue était convaincu de la nécessité d’unifier les sciences sociales.
Bourdieu et les sciences sociales. Réception et usages, sous la direction de Catherine Leclercq, Wenceslas Lizé, Hélène Stevens (dir.). Éditions La Dispute, 344 pages, 28 euros.
Histoire, anthropologie, science politique, philosophie, études littéraires, économie, droit, etc. : l’oeuvre de Pierre  Bourdieu est l’objet d’usages persévérants et souvent contrastés en dehors de la sociologie, sa discipline de (p)référence. Rien d’étonnant à cela. S’il s’est reconnu comme sociologue, il n’a cessé de provoquer les échanges interdisciplinaires, et il s’est aventuré partout où ses intérêts de connaissance le portaient. Les sommaires de la revue Actes de la recherche en sciences sociales, qu’il a fondée en 1975, en sont l’expression. L’heure n’était pas encore à l’hyperspécialisation, les circulations  étaient possibles. Bourdieu était convaincu de la nécessité d’unifier les sciences sociales. C’est moins le cas aujourd’hui : l’interdisciplinarité est davantage proclamée que mise en pratique par les professionnels des sciences sociales. Dans l’ouvrage collectif particulièrement utile et documenté qu’ils ont coordonné, Catherine Leclercq, Wenceslas Lizé et Hélène

Stevens proposent d’explorer comment Bourdieu a été acclimaté dans les sciences sociales. À distance des caricatures anti-bourdieusiennes (qui ont hélas la vie dure), les différents auteurs défendent une interdisciplinarité « réflexive », « fondée sur le refus des clôtures d’école, sur une pratique intellectuellement féconde des échanges entre disciplines et sur l’affirmation de la raison scientifique face aux  pouvoirs qui s’emploient à l’enrégimenter ». Cette voie était tracée par Bourdieu, comme
l’atteste un texte inédit inséré dans le volume qui porte sur les conditions sociales de l’internationalisation des sciences sociales. Le tableau dressé de cette « réception différenciée » selon les disciplines n’est pas exhaustif, mais il donne une bonne vue d’ensemble. On découvre combien les concepts, les cadres d’analyse et le « style Bourdieu » ont durablement
influencé. Cette diffusion n’est en outre pas sans heurts ni résistances, comme c’est le cas dans l’économie mainstream ou les études littéraires. Ce que Bourdieu recherchait du reste, au nom du « working dissensus » et de la confrontation rationnelle des savoirs d’où qu’ils viennent. Ainsi l’oeuvre continue-t-elle de secouer les structures mentales des sciences sociales, preuve s’il en est de son intérêt et de son endurance.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

MILITARES IMPEDIRAM QUE DOM HELDER RECEBESSE NOBEL DA PAZ

MILITARES IMPEDIRAM QUE DOM HELDER RECEBESSE NOBEL DA PAZ

Militares impediram que Dom Helder recebesse Nobel da Paz
Militares impediram que Dom Helder recebesse Nobel da Paz – Foto: Reprodução
PARA QUEM ACREDITA QUE O REGIME MILITAR NÃO FOI TÃO NOCIVO ASSIM (E PARA AQUELES QUE CONTINUAM PEDINDO A VOLTA DELE), UMA DEMONSTRAÇÃO DO QUÃO ESTE PERÍODO FOI TÃO NOCIVO PARA O BRASIL.  MILITARES IMPEDIRAM QUE DOM HELDER RECEBESSE NOBEL DA PAZ.
No site da Adital:
Dom Helder Câmara, um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e signatário do Pacto das Catacumbas, documento que contribuiu para a formação da Teologia da Libertação na América Latina, foi difamado pelo governo ditatorial brasileiro [1964-85], através do ministério das relações exteriores, com o objetivo de impedi-lo de receber o prêmio Nobel da Paz. O ato teria sido uma represália pela sua atuação em prol dos direitos humanos dos perseguidos políticos no Brasil.
Câmara, então arcebispo de Olinda e Recife [Estado de Pernambuco], mesmo indicado quatro vezes ao Nobel da Paz, entre os anos de 1970 e 1973, não pôde alcançar o reconhecimento, graças à atuação difamatória do governo brasileiro. Este produziu e difundiu entre os membros do comitê gestor do Prêmio informações que distorciam fatos de sua vida pessoal e religiosa.
A manobra foi revelada a partir de documentos obtidos pela Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara de Pernambuco (CNV-PE), disponibilizados pelo Itamaraty. A Comissão divulgou o conteúdo inédito dessa documentação na última sexta-feira, 18 de dezembro, em solenidade no Palácio do Campo das Princesas, sede do governo executivo pernambucano.
Dom Helder faleceu de causas naturais, em 1999, aos 90 anos.
“No Brasil, se mata e tortura em nome da segurança nacional”
“Isso [a perseguição e difamação a dom Helder] nós já sabíamos. Mas a partir da liberação desses documentos, pudemos reunir provas da atuação da ditadura brasileira para silenciar Dom Helder”, explica em entrevista à Adital a historiadora Lucy Pina Neta, membro do Instituto Dom Helder Câmara (IDHeC), sediado em Recife.
Lucy explica que a perseguição a Dom Helder teria se intensificado a partir de um convite para ele ir à França proferir uma palestra. Era o dia 26 de maio de 1970, e se comemorava o aniversário da Revolução Francesa.
Na ocasião, sob os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”, propostos pela revolução, Helder Câmara falou abertamente sobre a tortura e as perseguições políticas aplicadas pelo regime ditatorial brasileiro. Exemplificando os casos do religioso Frei Tito, covardemente torturado, e de um estudante pernambucano, que teria “se suicidado”, na Casa do Estudante, em Recife. “No Brasil, se mata e tortura em nome da segurança nacional”, vociferou.
“Aquele foi um ato revolucionário de um pacifista. Foi a primeira vez em que se falava sobre os casos de tortura [do governo militar] fora do Brasil. Por isso Câmara a nomeou [a palestra] ‘Quaisquer que sejam as consequências’, pois não se sabia o que ia acontecer. Um padre muito próximo seu já havia sido assassinado [padre Henrique, torturado e assassinado, em 1969], e havia o risco de não ser aceito de volta ao Brasil”, explica a ativista.
O governo brasileiro impôs um silêncio forçoso à mídia nacional, que foi impedida de citar o nome do bispo. A medida drástica funcionou no Brasil, mas, no mundo, a a figura de Dom Helder Câmara era cada vez mais citada como defensor dos direitos humanos.
Uma política para silenciar os defensores de direitos
O sociólogo e professor universitário Manoel Moraes, relator da CNV-PE e membro do Instituto Dom Helder Câmara (IDHeC), em entrevista à Adital defende que a maior conquista celebrada pela Comissão, neste momento, é a prova de que o governo militar agiu na escuridão diplomática, para silenciar defensores dos direitos humanos, no Brasil. Eles/as eram acusados/as de promoverem uma “campanha de desprestígio” contra o Brasil, no exterior.
“Não estamos discutindo se Dom Helder tinha ou não o direito ao Prêmio [Nobel da Paz], pois esta [Comissão que elege os vencedores] se trata de uma instância privada, não é esta a questão. O que estamos discutindo aqui é a ação difamatória do Estado brasileiro contra um cidadão nacional, que teve sua vida voltada para a proteção e denúncia contra as violações dos direitos humanos”, defende Moraes.
A ação do estado brasileiro teria violado princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como no que se refere à liberdade de expressão.
“Dom Helder denunciou as agressões da ditadura, o que os militares queriam era impedir que sua voz obtivesse mais espaço, silenciá-lo (…). O embaixador brasileiro em Oslo [capital da Noruega, país que outorga o Prêmio Nobel] mantinha o governo brasileiro informado. Por exemplo, há um documento que diz ‘ele não foi indicado este ano, mas no próximo [1971] ele terá grandes chances. [para impedir] Precisamos de recursos, de jornalistas…’”, afirma Moraes.
Na terceira parte do Relatório, nas “Cartas conciliares”, o leitor pode conferir como o religioso brasileiro reagiu ao processo de contrainformação que seu nome despertou. “Helder não se vitimava, acreditava que a sua luta era maior [que receber o Nobel]. Afirmava que sua não indicação era muito mais pelos seus acertos que pelos erros”, afirma o relator da CNV-PE.
Helder Câmara foi agraciado, entre outros, com o norueguês Prêmio Popular da Paz, espécie de “Nobel alternativo”, e com o Prêmio Martin Luther King, nos Estados Unidos.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Quase cem mil visitas, e quase um ano sem postar aqui.

Minha pesquisa segue. A direita brasileira se tornou adepta de posições extremas. Publiquei mais, mas fora do blog, logo subo. Um ano corrido. Volto logo. 

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Os cartazes de Itajaí

O fato: o aparecimento de cartazes que homenageiam o aniversário de Adolf Hitler (20 de abril) em um poste no Centro de Itajaí, ao lado da praça da Igreja Matriz.

Um grande amigo, o Douglas, da Carta Capital, com quem tenho o prazer de dividir a amizade e o ativismo em Direitos humanos, há tempos,  citou minha pesquisa e uma entrevista acerca do tema, sobre a questão. Agradeço.
Com ele e com a Carta Capital, e com outros veículos de imprensa, muito selecionadamente ainda falo acerca do tema de minha pesquisa. Com outros não.
Primeiro, porque, na imensa demanda por excitação que parece tomar conta da economia dos bens de informação, a imprensa desse país parece-me de enlouquecida a completamente delirante, por vezes. E tenho visto coisas absurdas  sobre o tema: gente questionando o número de neonazistas, pelo número de líderes nazis presos.
Seria como questionar o número de usuários de drogas pelo número de traficantes em regime de detenção. Obviamente, os que baixam, estudam e se identificam com literatura neonazista, são muito mas numerosos, infelizmente, do que aqueles que podemos julgar pelo crime de neonazismo tipificado claramente pela lei denominada de Lei do Crime Racial (Lei 7716/89, de 5 de janeiro de 1989).
O neonazismo é algo muito complexo. No Brasil, ele tem um tom separatista no sul, caça gays em São Paulo, faz apologia ao estupro corretivo de lésbicas e persegue os nordestinos.  Odeia, como em todo mundo, imigrantes, negros, judeus. Acredita que a História da segunda Guerra precisa ser recontada, e Hitler ser reconfigurado como um herói.
Uma vez, andando na paulista reclamei com um guarda de um grupo que trazia uma imensa faixa de Brasil nazista. Com a suástica imensa da faixa, que devia ter uns 5 metros, o grupo não deixava muita dúvida, quatro carecas tatuados com 14 e 88, os números chaves/símbolos (o primeiro se refere a um slogam criado por David lane, acerca da preservação racial, as 14 palavras, e o segundo refere-se a oitava letra do alfabeto, o H, e simboliza o Heil Hitler), e outros rapazes e moças.
Os guardas disseram que não viam apologia ao nazismo. Fiquei esperando que eles começassem a cantar o hino de WEIMAR… Se aquilo não era apologia o que seria? O hino?
Os cartazes de Itajaí falam de que Hitler ainda é comemorado, por células  espalhadas no mundo, no Brasil. Células neonazistas, que sonham com a pátria branca. O que desejo não é dar entrevistas sobre isso, mas é falar, um dia sobre sua extinção e comemorar, enfim a diversidade humana, por todos aceita, com todos.  Paz na terra.

Lei do Crime Racial (Lei 7716/89, de 5 de janeiro de 1989). 

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de um a três anos e multa.(Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
- o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; (Redação dada pela Lei nº 12.735, de 2012)
III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores. (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)
§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

sábado, 19 de abril de 2014

Um filme marcante, uma análise perfeita.

Hoje eu vou postar uma análise muito bem feita do blog Crítica (non)sense da 7Arte, cuja fonte está originalmente em http://moviesense.wordpress.com/2013/10/11/lore/.
Vi o filme ontem com Marcelo, e sem dúvida, a crítica está perfeita, sem os comentários absurdos que achei pela rede, que nem vou replicar aqui, desde negacionistas de plantão até gente que não consegue compreender que andar 900 km numa floresta na década de 40, co  outros irmãos pequenas é uma tarefa épica. Sinto, mas a mediocridade me incomoda. Não a ignorância, que esta tem jeito: livros e informação. Mas, o medíocre, aquele que acha q tem razão, baseando-se numa "opinião" dada pelo preconceito fomentado pelo refratarismo, sinto, não tenho tempo, nem paciência.
Vamos ao filme?

lore2
Uma época trágica, de grande sacrifício e perdas sempre tem muitas histórias impressionantes. Algumas contadas com muito mais frequência que outras. Lore é um destes filmes que conta algumas destas histórias menos conhecidas. Normalmente, quando lembramos do final da Segunda Guerra Mundial, somos apresentados a histórias de guerra heroicas, ou sobre algum sacrifício envolvendo a sobrevivência de judeus. Mas o que aconteceu com os filhos de alemães que se envolveram diretamente com o nazismo? Esta história pouco ou nada contada é o foco desta produção impressionante.
A HISTÓRIA: Enquanto toma banho e penteia o cabelo de forma enérgica, Lore (Saskia Rosendahl) conta os passos de um jogo de amarelinha que leva do inferno até o céu. A irmã dela, Liesel (Nele Trebs) está brincando, fora de casa, quando o cão da família começa a latir. Elas estão na Alemanha nazista. Lore olha pela janela, e vê que um caminhão do Exército alemão chegou. Descendo a escada, ouve a mãe, Asta (Ursina Lardi), e o pai, Peter (Hans-Jochen Wagner), conversando. Ele diz que eles poderão levar apenas o que couber no caminhão. Asta não parece satisfeita. Em pouco tempo, Lore, Liesel, os gêmeos Gunter (André Frid) e Jürgen (Mika Seidel) e o bebê Peter (Nick Holaschke) fogem com a mãe. Este será apenas o início do calvário desta família de alemães no final da Segunda Guerra Mundial.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes deste filme, por isso eu recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Lore): Uma ótima direção se percebe nos detalhes, em cada escolha de cena e no estilo da narrativa. Por isso mesmo, o trabalho da diretora Cate Shortland chamou a minha atenção logo nos primeiros minutos, com os enquadramentos e os cortes da narrativa diferenciados, poéticos, belos e rítmicos que mostravam o cotidiano de Lore e da família dela.
Esta característica no trabalho de Shortland se mantém durante todo o filme. Em vários momentos o espectador é surpreendido com um ângulo diferenciado, o foco em um detalhe da cena ou na interpretação dos ótimos atores envolvidos. Mas apenas uma ótima direção não é suficiente para fazer um grande filme. É peça fundamental também o roteiro. E Lore, para a nossa alegria, tem um trabalho primoroso de Shortland com Robin Mukherjee, que trabalharam sobre uma das três histórias contadas no livro The Dark Room, de Rachel Seiffert.
Mergulhamos na vida da família da protagonista quando eles devem abandonar a casa da família porque o Terceiro Reich está por um triz. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Esses momentos de ruptura sempre guardam uma força narrativa impressionante. Ainda mais quando não se trata da ruptura na vida de apenas uma pessoa. Mas, neste caso, de uma família e de uma nação. Quando Shortland escolhe acompanhar de perto, muito perto a Lore, que rapidamente acaba virando a líder daquela família de alemães, ela convida o espectador a ficar tão perplexo quanto aqueles “inocentes” personagens sobre tudo o que vai se descortinar aos poucos à frente de seus olhos.
A alegoria deste filme é envolvente e fascinante. Normalmente, como eu disse lá no início, somos apresentados às histórias das principais vítimas do extermínio nazista. Principalmente ao drama dos judeus. Ou então à histórias de heróis de guerra. Todas elas muito importantes, não tenho dúvida alguma. Especialmente a das vítimas do regime nazista. Afinal, só mesmo fazendo o registro histórico daqueles fatos absurdos e volta e meia relembrando o que aconteceu para tentar não repetir os mesmos erros. Ainda assim, eu sempre tive uma grande curiosidade para saber mais sobre a história menos contada.
E ela envolve o povo alemão. Alguns filmes abordaram esta ótica da história, mas eles são pouco frequentes – um exemplo relativamente recente foi Good, que tem uma crítica aqui no blog. Desde que comecei a estudar sobre a II Guerra Mundial na escola, sempre quis saber mais sobre a ótica dos alemães. Afinal, como eles permitiram que um regime como o nazista fizesse os absurdos que fez? A maioria sabia o que estava acontecendo, de fato, incluindo os campos de extermínio, ou eram enganados pela eficaz propaganda nazista? Quantos se preocupavam mais com o êxito econômico do regime e ignoravam, propositalmente, a “limpa racial” que acontecia paralelamente?
Nunca tive respostas satisfatórias para estas perguntas. E por mais que a Alemanha tenha se recuperado muito bem da divisão do país e de todas as sanções que vieram após o fim da guerra, é evidente que as cicatrizes naquele país continuam abertas. Pois bem, Lore ajuda a contar um pouco desta história menos conhecida. Através da história ficcional de Lore e de sua família, acompanhamos a luta pela sobrevivência dos herdeiros de um comandante nazista, responsável pela operação em um dos vários campos de extermínio.
Apesar de ser uma ficção, este filme tem uma história muito convincente e que, quem sabe, não guarda um bom paralelo na vida real? Para mim, uma das características mais marcantes do filme é que temos uma divisão fundamental entre os adultos e as crianças desta história. A maioria dos velhos sabia muito bem o que estava acontecendo, e lamentaram a morte de Hitler e o fim da Alemanha como eles conheciam. Mas os jovens e as crianças viviam na ignorância, acreditando na história que os seus familiares contavam – e nestas histórias, claro, Hitler era um semi-deus, perfeito, e não havia nada de horror nazista.
Desta forma, a trajetória de Lore e de seus irmãos, com tudo o que acontece ao redor deles, nos leva pelas mãos para mergulhar na transição entre a alegoria da infância e da inocência/ignorância para a passagem para a vida adulta e para o confronto com a dura realidade, seus crimes e imperfeições. Nem todas as crianças passam pelo mesmo choque, ou conseguem ter a mesma leitura da realidade. O que parece ter acontecido com a população da Alemanha que acaba sendo dividida em diversos setores.
Quando Asta decide deixar os filhos e recomenda que Lore procure a avó deles, perto de Husum, no Norte da Alemanha, quase na fronteira com a Dinamarca, ela faz isso antes que os Aliados a encontrem. Ela sabe que será presa e que os seus filhos serão levados, ou ficarão desprotegidos. Certo que o abandono de Asta também não ajuda nada aos filhos. Pelo contrário.
Impressionante a força da protagonista, interpretada pela fantástica Saskia Rosendahl, para levar a família adiante. E ela também tem sorte. Sim, porque se não tivesse encontrado pelo caminho a Thomas (Kai-Peter Malina), dificilmente Lore e os irmãos teriam chegado tão longe. E a aparição daquele jovem na história apenas torna ela mais interessante, criando a tensão sexual e o perigo constante que fazem o espectador esperar pelo pior a qualquer momento.
Lore encontra Thomas em uma casa onde, bem próximo dali, uma mulher havia sido estuprada e morta. Ele seria o culpado? Esta pergunta ficou na minha mente a partir de então. Rapaz de poucas palavras, mas de olhar fixo em Lore, Thomas é uma incógnita. Até que começa a defender aquela família – para, ele também, é preciso dizer, seguir adiante. Mas não sabemos até quando aquela paz aparente entre filhos de alemães e um judeu sobrevivente vai persistir.
A impressão que o roteiro nos dá é que a missão que Lore recebe da mãe é bastante absurda. Logo no início eu tive a impressão de que ela praticamente teve que cruzar o país carregando os irmãos. Quando a avó pergunta para Lore de onde eles estavam vindo, ela diz que eles tinham saído da Floresta Negra. Pois bem, procurando a distância entre a Floresta Negra, que fica no Sul da Alemanha, perto da Suíça, e a cidade de Husum que, como eu disse antes, fica ao Norte, vi que a protagonista desta história percorreu uma distância que hoje é medida entre 880 quilômetros e 930 quilômetros – dependendo da rota adotada. Imaginaram fazer boa parte desta distância à pé e sem dinheiro?
Neste caminho, a protagonista e os demais personagens nos apresentam a realidade da Alemanha logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Havia muita fome, violência, mortes e controle do movimento e da vida das pessoas. O país foi dividido entre os vencedores, e os alemães eram vistos com desconfiança. Quem teve ligação com o regime nazista foi perseguido, julgado, morto ou exilado. Claro que as pessoas ligadas ao nazismo cometeram absurdos, mas será mesmo que todos os alemães podiam ser considerados culpados pelo que aconteceu?
Interessante, e o filme mostra bem isso, que os próprios alemães se tratavam de forma desigual. Fica evidente que muitos adultos, que provavelmente discordavam dos caminhos da ditadura de Hitler, passaram a tratar com desconfiança os seus pares com o fim da guerra. Quando descobriam a ligação das pessoas com o regime, como é o caso dos camponeses que vivem perto da família quando ela se refugia após sair de casa, reagem com repúdio e discriminação. Sob esta ótica, a história do filme sugere que nem todos pensavam igual na Alemanha nazista. E o clima que percebemos, com o fim da guerra, é de “cada um por si e salve-se quem puder”.
Havia alguma solidariedade, como os centros para ajuda onde as pessoas podiam tomar banho e pegar alguma comida, mostrado quase no meio do filme. Mas esta “solidariedade” era acompanhada de uma exigência: os alemães deveriam olhar várias fotos que mostravam o Holocausto. E aí outra parte do roteiro interessante: a reação de muitas pessoas que, mesmo colocadas frente ao inevitável, seguiam negando que aquilo havia ocorrido. Algo que continua até hoje – a incrível negação da realidade abominável daqueles anos.
Neste momento do filme, Lore vê pela primeira vez a história perfeita contada por sua família começar a ruir. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Ela acredita que identificou o pai em uma foto de um campo de extermínio. Mais tarde, ao confirmar a impressão, ela se desfaz das “provas”. E vive o conflito que muitos alemães viveriam naqueles anos e nas gerações seguintes: afinal, em que história eles deveriam acreditar? No caso de Lore, naquela que a mãe e o pai sempre lhe contaram, ou naquela que ela começa a perceber ao ter que cruzar a Alemanha carregando os irmãos?
Quando Lore percebe que o caminho deles acaba ficando quase impossível de ser separado do de Thomas, as dúvidas apenas crescem. Afinal, ele é um judeu, um parasita, enganador, conforme ela sempre aprendeu em casa. Evidente que a garota sente atração e repúdio em relação a ele, em uma mistura entre o que ela aprendeu até então e a sua nova fase, de entrada na vida adulta. Ao mesmo tempo, me impressionou a atitude de Thomas, de ajudar Lore e aos irmãos, mesmo eles sendo “inimigos”.
E aí surge uma das reflexões do filme. Afinal, aqueles descendentes de nazistas mereciam ser punidos? Thomas deveria se vingar deles pelo que os pais haviam feito? Evidente que não. Mas daí a ajudá-los por tanto tempo… acabei temendo pelo que pudesse acontecer no final da história. Na dúvida se ele estava fazendo aquilo por altruísmo ou com alguma intenção ruim bem camuflada.
Mas voltando para a peregrinação de Lore, que também foi sentimental e filosófica – mais que apenas de uma longa viagem. Em um certo momento do filme, na troca de diálogos mais poderosa do roteiro, quando Thomas está ameaçando ir embora, a protagonista lhe confronta dizendo que ele é um mentiroso compulsivo, que não consegue evitar a mentira. Inicialmente ela atribui as mentiras aos judeus – afinal, ele é um deles. Mas depois, comenta que elas estão por toda a parte. Bingo! Esta é a leitura que Lore faz a duras penas. E tanto ela, quanto Thomas e nós, sabemos que ela não está se referindo apenas aos judeus, mas a todas as mentiras que pairam naquela Alemanha que ela não conhecia.
Pouco depois, temos uma outra grande surpresa no roteiro – ela não seria a primeira, e nem a mais forte delas. Quando descobrimos que Thomas andava com documentos que não eram dele, uma série de perguntas para as quais nunca teremos respostas se abrem. Afinal, ele não era realmente judeu? Ou ele era judeu e apenas andava com os documentos de outro homem? Não é a impressão que Jürgen passa quando conta a Lore que o rapaz usava documentos de um judeu porque os americanos gostavam deles. Mas se ele não era judeu, porque havia sido preso? Sim, porque ele tinha no braço os números de quem havia passado por um campo de concentração. Se ele não havia sido preso porque era judeu, ele fazia parte de que grupo de perseguidos? Nunca saberemos.
Mas esta revelação abre um precedente de dúvidas interessante. Toda a generosidade que Thomas parecia ter sido capaz de fazer, como judeu, ajudando a filhos de alemães que haviam perseguido o seu povo, poderia ser falsa. Talvez ele fosse um comunista, ou um homossexual – por isso ele havia rejeitado Lore? Não importa. E talvez seja essa uma das principais mensagens deste filme. Tanto ninguém deveria ser perseguido por ter uma determinada característica, como a generosidade que aquele rapaz é capaz de ter não deve ser atribuída a um determinado grupo. As pessoas sempre são responsáveis pelos seus atos, e tem escolhas para fazer.
Sei que me alonguei demais, desta vez, mas achei este filme fascinante. E se a narrativa inteira é cheia de belas imagens, um ótimo ritmo, desempenhos marcantes dos atores e reviravoltas importantes, o que dizer do final de Lore? Achei simplesmente perfeito. Depois que ela e os irmãos tem uma perda terrível e chegam em “local seguro”, a avó deles (Eva-Maria Hagen) segue querendo seguir com os mesmos valores e a educação de antes. E afirma que os netos não devem pensar que os pais deles fizeram qualquer coisa de errado – pensamento que muitos alemães tinham após a guerra e que muitos seguiram tendo depois. Mas tudo tinha mudado.
Lore, Liesel e Jürgen não eram mais os mesmos, assim como as novas gerações daquele país. Eles estão cansados de mentiras e de regras que não valem mais. E esse sentimento de fúria e indignação não poderia ser melhor exemplificado do que na destruição que Lore faz no quarto com aqueles símbolos de um passado que tinha chegado ao fim. Genial.
NOTA: 10.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Tudo funciona bem neste filme. Antes, elogiei a direção diferenciada de Cate Shortland e o roteiro bem escrito e envolvente escrito por ela e Robin Mukherjee. Pois bem, mas estes são apenas alguns fatores fundamentais para Lore dar certo. Devemos acrescentar à lista a ótima, detalhista e poética direção de fotografia de Adam Arkapaw; a clássica, envolvente e emocionante trilha sonora de Max Richter; e a precisa e irretocável edição de Veronika Jenet.
Por tratar-se de um filme de época, Lore precisa que outros elementos técnicos funcionem bem para transportar o espectador para o tempo da história. Então merece ser citado o excelente trabalho de Silke Fischer e Jochen Dehn no design de produção; novamente Jochen Dehn, mas agora na direção de arte; e o de Stefanie Bieker nos figurinos. Outro aspecto técnico bem preciso, sem exageros, e que acaba tendo uma importância grande nesta produção é o da equipe de maquiagem coordenada por Ulrike BorrmannAntje Dahm e Kathrin Westerhausen.
Fiquei tão fascinada com este filme que eu quis saber um pouco mais sobre o livro The Dark Room, de Rachel Seiffert, que inspirou o roteiro de Lore. Encontrei neste texto do The Guardian algumas informações sobre a obra. Soube, por exemplo, que The Dark Room narra três histórias diferentes ligadas pela narrativa da “perda da inocência de uma nação”. A primeira envolve um jovem alemão, Helmut, com idade para servir o exército, muito patriota, mas que é incapaz de se juntar às tropas porque tem uma paralisia parcial em um dos braços. A segunda história é a de Lore e seus irmãos. E a terceira foca Michael, um professor que vive 50 anos após o fim da guerra e que fica dividido entre o resgate do passado do avô e a falta de culpa dos alunos pelo que foi feito no passado.
Assim como me interessei por The Dark Room, procurei saber mais sobre esta incrível diretora Cate Shortland. Pois bem, ela é australiana e tem 45 anos. Estreou na direção em 1998 com o curta Pentuphouse. Depois, ela dirigiria outros dois curtas e capítulos de duas séries de TV antes de estrear no comando de um longa-metragem. Essa estreia em longas ocorreu em 2004 com Somersault, um filme que eu não assisti mas que, pelo que eu li rapidamente, aborda amor e sexo. Dois anos depois, surgiria The Silence, um filme feito para a TV e, no ano passado, este Lore.
Outro nome que me impressionou neste filme foi o da protagonista Saskia Rosendahl. E o mais incrível: Lore foi o seu primeiro papel no cinema! Uau!! Depois desta estreia, a atriz que fala alemão, inglês e espanhol e sabe tocar violão participou de outras quatro produções, sendo uma delas feita para a TV. Além dela, achei excelente o trabalho de Kai-Peter Malina como Thomas. Os dois ajudam a sustentar o filme.
Lore estreou no Festival Internacional de Cinema de Sydney em junho de 2012. Depois, o filme participaria de outros 21 festivais. Número impressionante. Nesta trajetória, ele ganhou 17 prêmios e foi indicado a outros 23. Entre os prêmios que recebeu, destaque para os de Melhor Diretora para Cate Shortland e Melhor Atuação de um Jovem Ator para Saskia Rosendahl conferidos pelo Círculo de Críticos de Cinema da Austrália; Melhor Filme segundo os críticos do Festival de Cinema de Hamburgo; Prêmio do Público para Cate Shortland no Festival Internacional de Cinema de Locarno; Melhor Atriz para Saskia Rosendahl, Melhor Direção de Fotografia, Melhor Trilha Sonora e Melhor Filme no Festilva de Cinema de Estocolmo; e Melhor Novo Diretor para Cate Shortland no Festival Internacional de Cinema de Valladolid. Só para citar os principais.
Falando em prêmios, Lore foi o indicado da Austrália para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na edição 2013. Mas não chegou até a lista dos cinco finalistas. Lembrando quem chegou na reta final: AmourNoRebelleEn Kongelig Affaere e Kon-Tiki. Destes, assisti apenas ao premiado Amour e também a Kon-Tiki. Amour, de fato, é maravilhoso. Mas entre Lore e Kon-Tiki, sem dúvida prefiro o primeiro. Assim, posso dizer que foi uma pena o filme, que é uma coprodução da Austrália, Alemanha e Reino Unido, não ter chegado até a lista de finalistas do Oscar.
Lore teria custado 4,3 milhões de euros e faturado, nas bilheterias dos Estados Unidos, quase US$ 969 mil. E na Austrália, pouco mais de 296,5 mil dólares australianos. Tem que ver o desempenho no restante dos mercados, acumulado. Mas os dados disponíveis são preocupantes e mostram que o filme pode não ter lucro.
Apesar de ser uma produção de três países, Lore foi totalmente rodado na Alemanha, em diferentes cidades.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7 para Lore. Uma boa avaliação para o padrão do site, mas nada muito excepcional. Os críticos que tem os textos linkados no Rotten Tomatoesdedicaram 92 textos positivos e sete negativos para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 93% e uma nota média de 7,6. Poucas vezes vi os críticos darem uma nota melhor que o público. Esta é uma destas ocasiões.
Encontrei dois cartazes de Lore. E admito que fiquei em dúvida por bastante tempo sobre qual eu deveria colocar aqui. Escolhi o que abre esta crítica, mas admito que gostei muito do outro também. Oh, dúvida cruel! Acabei escolhendo o cartaz alemão, mas o que foi para os Estados Unidos era mais impactante. Só que como trazia a bandeira nazista, poderia dar a impressão que era algum tipo de “propaganda”. Talvez por isso que o filme não tenha se saído também nos EUA.
CONCLUSÃO: Saber mais sobre o nosso passado é algo fundamental. Não apenas para entender como chegamos até aqui, mas também para aprender com os erros e com a dor para que eles não se repitam mais. E por mais que você achei que não tem nada a ver com a Alemanha nazista, toda a civilização moderna foi influenciada em maior ou menor grau por aqueles fatos. Por isso mesmo, acho tão impressionante quando um filme como Lore tem a coragem de voltar atrás na história para fazer um libelo impressionante sobre marcas que aquela época deixou em pessoas inocentes.
Filmes históricos sempre valem a pena. Especialmente quando tem como característica principal resgatar a vida de pessoas comuns e o que elas aprenderam com a dura realidade que viveram. Lore tem uma história impressionante, na qual não sobra nenhuma linha – seja de diálogos, seja da narrativa. Muito bem dirigido e com ótimos atores, este filme é um libelo a um futuro sem os absurdos que vivemos em diversas fases do passado. Imperdível.