terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

um exercício de descrição...


muito interessante, foi disponibilizado pelo Blog Oficina de etnografia, aqui.

A partir desta imagem...




domingo, 25 de fevereiro de 2007

Bourdieu, fontes

Léxico, aqui. Homenagem College de France, nesta URL. Mais fontes aqui.

A favor da etnografia

Um texto da Mariza Peirano. Aqui.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Do Orkut


A comunidade Claudio Ulpiano traz textos de aula do maravilhoso e saudoso professor. Como o trecho abaixo:
Pode ser que seja um excesso meu, mas quando nós formamos a idéia de perfeição, admitimos que aquilo que é perfeito está contente consigo próprio. O que seria [o mesmo que] dizer que a perfeição é uma coisa completa, acabada, na qual não falta nada, tudo nela está realizado. Parece que isso é absolutamente necessário a esse tipo de pensamento. Aquilo que é perfeito é completo e acabado. Certo?De um outro modo, se nós verificarmos tudo aquilo que está sob os efeitos do tempo, seja lá o que for, o que estiver sob o efeito do tempo é necessariamente inacabado: o que está no tempo está em passagem, está em mutação. Em filosofia se usa, até uma maneira muito fácil de se entender, que aquilo que está no tempo é e não-é ao mesmo tempo. Porque é, está deixando de ser aquilo que é. O que faz
uma clara distinção entre a idéia de perfeição e aquilo que está no tempo. De outro modo, a idéia de perfeição não recobre aquilo que está no tempo. Não há — entre a idéia de perfeição e o que está no tempo — uma relação de cobertura. Em filosofia se usa a palavra subsunção. A perfeição não subsume o que está no tempo. Então, há uma diferença entre as coisas que estão no tempo e a idéia de perfeição. Se vocês entenderam, eu vou passar a usar, como eu já expliquei noutras aulas para vocês, a noção de idéia da maneira que eu usei a de perfeição: a idéia, não é aquilo que possui representantes no mundo. Mas é aquilo para o qual os representantes do mundo tendem. Entenderam?

Idéia de Perfeição 1
Trecho de aula de Claudio Ulpiano de 1989

domingo, 18 de fevereiro de 2007

Leituras...


Baloma; the Spirits of the Dead in the Trobriand Islands
by Bronislaw Malinowski. Texto original aqui.



Originally published in The Journal of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, Volume 46.
[1916]

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Reflexões acerca do Ensino de Sociologia (e da Antropologia) no Ensino Médio

escrevi este artigo há algum tempo. preciso revê-lo!

Entre Delors e os PCNs “a quem serve o ensino antropológico no Ensino Médio”?

INTRODUÇÃO
O presente texto pretende contribuir com a discussão acerca do material pedagógico para a disciplina Sociologia no Ensino Médio, no Brasil, partindo de duas reflexões: a primeira assume uma postura crítica diante da compreensão evidenciada por diversos órgãos acerca do Ensino Médio, e a segunda trata da disciplina inclusa recentemente no mesmo, dentro das especificidades para ela traçadas pelos documentos do Ministério da Educação e Cultura.
Na primeira parte do texto enfrentaremos a relação entre o Relatório Delors e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o Ensino Médio, mas também discutiremos o relatório final da Reunião Internacional de Especialistas sobre o Ensino Médio no Século XXI: Desafios, Tendências e Prioridades. A proposta é tecer um diálogo crítico com estas propostas, para pensar como a construção de políticas públicas, suas abrangências e sua efetivação, no Brasil, são respostas ás prioridades das agendas internacionais.Para situar cronologicamente o debate, a agenda internacional será discutida no presente texto partindo do Relatório Delors[1], concluído em 1996, (publicado no Brasil, com o título Educação: Um Tesouro a Descobrir, em 1998) e elaborado pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, coordenada por Jacques Delors. Este relatório é fruto de uma longa jornada de textos e discussões priorizadas pela UNESCO, desde a Conferência Mundial de Educação para Todos[2], datada de 1990, e que se amplia acerca da discussão a respeito do ensino médio na conferência Ensino Médio no Século XXI: Desafios, Tendências e Prioridades[3], realizada na China em 2001. A agenda nacional se referencia na Constituição brasileira, de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394), de 20 de dezembro de 1996 e nos diversos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), de 1997. É preciso pensar as propostas destes documentos e relatórios, problematizando-os também como agendas ideológicas, e pensando-os como é possível importar idéias sem avaliar a situação nacional.
Na época em que se estava construindo a discussão acerca da LDB, Florestan Fernandes, num artigo para o Jornal de Brasília[4], afirmara:
Em vista da próxima elaboração da nova lei de diretrizes e bases de educação nacional, é fundamental que se revejam as práticas imperantes em nosso ensino, especialmente no primeiro e segundo graus. Começamos por importar idéias francesas e alemãs, no fim do século passado; tentamos depois, também, “reproduzir” o que nos pareceu ser o ensino primário norte-americano e o enciclopedismo iluminista de segundo grau francês. Em ambas imitações falhamos. As instituições importadas não podem ser redefinidas, em seu significado, estruturas e funções fora do seu contexto psicossocial e cultural. [grifos nossos]

Na ocasião, o grande sociólogo brasileiro já advertia acerca da impossibilidade de se importar práticas de ensino, absolutamente distanciadas da realidade brasileira, que apenas ocasionaram, para Florestan Fernandes um imenso empobrecimento educacional: “empobrecemos as instituições, as práticas que elas engendram e o seu rendimento pedagógico”, afirmou ele, no mesmo artigo. É nesse mesmo sentido que esperamos tratar os textos que atendem a demanda internacional para evitar a mera “importação de práticas”: é preciso pensar o ensino, e aqui nos deteremos no ensino médio, enfatizando a realidade nacional, e nosso “contexto psicossocial e cultural” como advertiu Florestan Fernandes. Como pensar o Ensino Médio para que este possa participar da idéia do grande sociólogo brasileiro, defensor da necessidade de “construir uma escola auto-suficiente e autônoma, capaz de crescer por seus próprios dinamismos?”
Na segunda parte tentaremos situar como a inclusão da disciplina Sociologia se relaciona, nas diversas fontes documentais, com a proposta das agendas nacionais e internacionais, e como sua área de abrangência pode influenciar na discussão de toda esta temática, inclusive redirecionando as mesmas para o desafio proposto por Florestan Fernandes: “conferir à sala de aula a capacidade de operar como o experimentum crucis da prática escolar humanizada, de liberação do oprimido, de descolonização das mentes e corações dos professores e alunos, de integração de todos nas correntes críticas de vitalização da comunidade escolar e de transformação do meio social ambiente”. Para tanto, analisaremos como os diversos saberes disciplinares são relacionados no texto, produzido pelo MEC, Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais, Ciências Humanas e suas Tecnologias[5] que regula: “no conjunto das disciplinas curriculares que formam a área de Ciências Humanas e suas Tecnologias, a Sociologia engloba conhecimentos de Antropologia, Política, Direito, Economia e Psicologia”. Para efetivar esta análise, utilizamos o software de Pesquisa Qualitativa, o N*VIVO (versão 7), que permitiu relacionar quando temáticas destas disciplinas apareciam nos diversos textos, otimizando e aprofundando a análise. Devido aos limites deste trabalho, no entanto, apresentaremos aqui, apenas, as referentes à Antropologia.


1.1 AS AGENDAS INTERNACIONAIS E O ENSINO MÉDIO

A UNESCO[6] priorizou nas duas últimas décadas pesquisas e produção acerca da Educação, e disponibiliza em sua página muitos textos acerca do tema. Entre estes, o relatório final da Reunião Internacional de Especialistas sobre o Ensino Médio no Século XXI: Desafios, Tendências e Prioridades, que aconteceu em Beijin, República Popular da China, no ano de 2001, aponta para uma profunda necessidade de se pensar o processo educacional diante da “responsabilidade de todos os países na preparação dos estudantes para que possam atuar com competência ética e responsável em um mundo de rápidas transformações econômicas, sociais e culturais”. Neste documento a análise acerca do ensino médio parte de duas proposituras: a) O ensino médio deve merecer alta prioridade; b) Os objetivos e as funções do ensino médio devem ser redefinidos para o século XXI. O Ensino Médio seria, portanto um locus para a habilitar os estudantes em instrumentalizar as “rápidas transformações” do mundo dito contemporâneo, e o acesso ao ensino médio se torna prioritário para que esta demanda seja atendida. É preciso, informa o documento na página 22 atender a demandas do trabalho, e pensar como o ensino médio poderia permitir que o aluno se torne competente na “capacidade de se comunicar, de trabalhar em equipe, de adaptar-se às inovações, de ser renovador e criativo, de ter familiaridade com as novas tecnologias”. As quatro direções sugeridas pelo documento encontram os desejos dos orientadores do mesmo,e o ensino médio em sua “reforma” deveria considerar: “as novas condições de aprendizagem, a sociedade, a economia e o ambiente de trabalho”(pág19); produzindo por assim dizer jovens “capazes de decidir o seu próprio futuro, à luz de seus gostos e aptidões, e adquirir as competências que lhes permitirão ter êxito em sua vida adulta” (pág.15). É preciso priorizar ainda a construção de “sujeitos” capazes de uma revisão crítica dos objetivos e funções do ensino médio” (pág 7), pois, mister se faz lembrar, a reforma do Ensino Médio deve contribuir para os estudantes de modo que “sejam levadas em consideração as necessidades diversificadas dos alunos e para oferecer-lhes conhecimentos e saberes ao longo de toda a vida, inclusive o aprendizado profissional” (pág. 13). O documento orienta-se portanto na direção de se pensar o Ensino Médio como um espaço de aceleração da aprendizagem: é preciso aprender a aprender, para aprender a revisar criticamente o mundo, para decidir o próprio futuro, para aprender uma profissão. Inclusive quando o documento detalha a necessidade de se pensar uma educação mais geral ou uma mais técnica, é o foco na possibilidade do aprendizado em aprender que tecerá as escolhas nacionais e demarcará as viabilidades de cada proposta. Em sua página 45 o relatório afirma:
Já se percebe com clareza, em muitos países, uma tendência à aprendizagem ao longo de toda a vida, em que se modificam constantemente as características e exigências dos empregos e em que as pessoas passam a ter de transferir-se a cada momento entre os locais de ensino, de treinamento e de trabalho. Em vários países, o ensino médio já começou a ajustar-se a esta realidade, ora criando estruturas flexíveis e opções variadas em seus programas, ora reforçando os seus vínculos com o mundo do trabalho.

Nesse sentido o documento de Beijin se articula diretamente ao Relatório Delors, orientando o processo de pensar a educação como uma prática que “deve transmitir, de fato, de forma maciça e eficaz, cada vez mais saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases das competências do futuro”, ao mesmo tempo em que “compete-lhe encontrar e assinalar as referências que impeçam as pessoas de ficarem submergidas nas ondas de informações”, denominado, portanto, o processo educacional, simultaneamente como “um saber-fazer evolutivo” e “uma bússola”, que por um lado permite a aquisição continuada de dados e competências, intrumentalizando cognitivamente o indivíduo, e, por outro, diante dos novos mapas, permite que este mesmo indivíduo se direcione em sua busca de desenvolvimento, quer pessoal, quer voltado a projetos coletivos. O relatório Delors se arquiteta em quatro pilares do conhecimento – aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, aprender a ser. Nestes se resume a proposta dos diversos documentos produzidos acerca da educação: é preciso preparar o estudante para uma competente capacitação em se adequar às mudanças constantes no processo de trabalho, cada vez mais dinâmico e tecnológico. O texto evidencia ainda quão frágil é a “atualização” num mundo cercado de tão grandes e constantes mudanças, argumentando que apenas um “sujeito” capaz de “aprender a aprender” poderá se manter atualizado e caberia a educação viabilizar este aprendizado do aprendizado, que tornaria o mundo mais justo, mais ético e com menos assimetrias sociais. Esta idealização se vale dos valores do trabalho como forma de satisfação pessoal e desenvolvimento social e criativo do “sujeito”. Nesse sentindo a agenda internacional da UNESCO aponta para uma educação que seja “Básica, Técnica e Tecnológica[7]”, que se direcione a adaptabilidade do sujeito ao mercado de trabalho e a fluidez que a globalização exige deste sujeito, para garantir sua “empregabilidade”. Esperamos com isso ter demonstrado que há, de fato, uma agenda internacional, que pensa a educação como um facilitador de um processo cognitivo continuado, que serve, também aos interesses mercadológicos, econômicos e de produção da globalização e que o Ensino Médio é visto como uma necessidade destes interesses, e que a universalização do mesmo é uma exigência deste processo. Um outro documento acerca da Educação Técnica e Profissional, ETP, (na qual se inclui, evidentemente o Ensino Médio), se afirmou:
Mesmo que a responsabilidade do ETP seja antes de tudo competência do Estado numa economia de mercado moderna, a concepção da política de ETP e sua instauração devem ser assegurados por novas parcerias entre o Estado, empregadores, profissões, empresas, sindicatos e a sociedade. Esta parceria deve criar um quadro legislativo coerente para permitir o lançamento de uma estratégia nacional de mudanças na qual o Estado afora sua função de provedor do ETP, pode dirigir sua orientação e lhe dar configuração para facilitar, coordenar e assegurar a qualidade de forma que o ETP seja acessível a todos, identificando e realizando a missão do serviço público. A capacidade das parcerias deve ser fortalecida por dispositivos e meios de formação destinados a proporcionar as devidas competências.

O texto acima, retirado do relatório de 1999, Recomendações sobre Ensino Técnico e Profissional, produzido na conferência de Seul, revela a dinâmica e esperada associação entre o setor privado e público para favorecer aos interesses da “economia de mercado moderna” que pense a educação não mais sob a ótica do “encicopledismo francês”, mas sob o interesse do neoliberalismo globalizado. Mais uma vez, importaremos sem problematizar?

A IMPORTAÇÃO DA AGENDA INTERNACIONAL: A LDB, OS PCNS E O LUGAR DO ENSINO DE SOCIOLOGIA
Na Lei nº 9.394, que “estabelece as diretrizes e bases da educação nacional”, o artigo 35, trata das finalidades do ensino médio, priorizando neste: a)um lugar de aprendizado que ao mesmo tempo que aprofunda e retoma estudos anteriores, prepara para etapas posteriores; b) uma etapa de “preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando”; c) a construção de uma “formação ética” aliada ao “desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”; visando o “aprimoramento do educando como pessoa humana”; d) a apreensão de elementos “científico-tecnológicos dos processos produtivos”, teóricos e práticos, nas diversas disciplinas, que o capacitem para uma maior apreensão dos mesmos em etapas posteriores. Avaliando estas “finalidades” é possível pensar o ensino médio como um lugar de passagem, que ao mesmo tempo, retoma e antecipa, forma e prepara. Na LDB, no artigo seguinte se tratará das diretrizes do currículo do ensino médio, .e especificamente no parágrafo., inciso III, do § 1º se trata da Sociologia:
Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizadas de tal forma que ao final do Ensino Médio o educando demonstre:
III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania.”
Abria-se a porta para o retorno da Sociologia, enquanto disciplina, ao currículo do ensino médio brasileiro. Excluída do mesmo desde 1941 quando a Reforma Capanema desobriga sua presença nos cursos secundários, com exceção do denominado curso normal, que preparava professores para a Educação básica, a Sociologia vai perdendo força nos currículos, até sua retirada maciça dos mesmos no período militar, que em sua ideologia de civismo e culto à obediência e à lei via na disciplina uma matéria indesejável. É na década de 90 que a luta de associações, estudantes, professores, parlamentares se vê contemplada, com a efetivação do Parecer CNE/CEB Nº: 38/2006 do Conselho Nacional de Educação, que trata da Inclusão obrigatória das disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio. Tendo como relatores Cesar Callegari, Murílio de Avellar Hingel e Adeum Hilário Sauer, o Parecer reitera:
a importância e o valor da Filosofia e da Sociologia para um processo educacional consistente e de qualidade na formação humanística de jovens que se deseja sejam cidadãos éticos, críticos, sujeitos e protagonistas. Essa relevância é reconhecida não só pela argumentação dos proponentes, como por pesquisadores e educadores em geral, inclusive não filósofos ou não sociólogos.

Reconhece, ainda, “essa importância ao destacar nominalmente os conhecimentos de Filosofia e de Sociologia, dando-lhes valor essencial e não acidental, com caráter de finalidade do processo educacional do Ensino Médio. (artigo 36, § 1o, inciso III, da Lei nº 9.394/96)”, e destaca:
Sob a ótica da LDB, os conhecimentos de Filosofia e Sociologia são justificados como “necessários ao exercício da cidadania” (artigo 36, § 1o, inciso III, da Lei nº 9.394/96). Com os demais componentes da Educação Básica, devem contribuir para uma das finalidades do Ensino Médio, que é a de “aprimoramento como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (art. 35, inciso II, da LDB). E devem, ainda, mais especialmente, seguir a diretriz de “difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática” (art. 27, inciso I, da LDB).

Em sua conclusão o documento afirma que adotando-se, por parte do estabelecimento de ensino, segundo permite a lei específica, organização curricular flexível, deve-se incluir o “domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania”, adotando-se a organização curricular estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia. Mas, o que os PCNs, que orientam esta inclusão, entendem por Sociologia?
O primeiro volume dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que trata das bases Legais[8], se refere por quatro vezes vezes, o texto da LDB supracitado. Explicando-o o relatório informa:
Pela constituição dos significados de seus objetos e métodos, o ensino das Ciências Humanas e Sociais deverá desenvolver a compreensão do significado da identidade, da sociedade e da cultura, que configuram os campos de conhecimentos de História, Geografia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, Direito, entre outros. Nesta área incluir-se-ão também os estudos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania, para cumprimento do que manda a letra da lei. No entanto, é indispensável lembrar que o espírito da LDB é muito mais generoso com a constituição da cidadania e não a confina a nenhuma disciplina específica, como poderia dar a entender uma interpretação literal da recomendação do inciso III do Parágrafo primeiro do Artigo 36. Neste sentido, todos os conteúdos curriculares desta área, embora não exclusivamente dela, deverão contribuir para a constituição da identidade dos alunos e para o desenvolvimento de um protagonismo social solidário, responsável e pautado na igualdade política.

O texto portanto insere a disciplina Sociologia na área de Ciências Humanas e Sociais, que partilha o interesse didático pelo desenvolvimento da “compreensão do significado da identidade, da sociedade e da cultura”, cujas divisões disciplinares abarcariam “História, Geografia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, Direito, entre outros”. Caberia a esta área de “Ciências Humanas e Sociais”, cumprir “a letra da lei” pela inclusão da Sociologia e da Filosofia, esta última não enumerada na relação que antecede, para efetivar a exigência da LDB que prevê nestas duas disciplinas os estudos “ necessários ao exercício da cidadania”, ainda que, para os autores dos PCNs estes estudos sejam também contemplados não confinados “a nenhuma disciplina específica”, apontando para que TODOS os conteúdos desta área contribuam, de fato, para “a constituição da identidade dos alunos e para o desenvolvimento de um protagonismo social solidário, responsável e pautado na igualdade política”. Desta forma se define, no texto dos PCNs que tratam das abses legais, o sentido de exercício de cidadania: por um lado a formatação de uma “identidade dos alunos” e por outro um “protagonismo social solidário, responsável e pautado na igualdade política”.
A seguir, no quarto volume dos PCNs, que tratam especificamente das “Ciências Humanas e suas Tecnologias[9]”, a disciplina Sociologia é mais abrangentemente discutida: o texto destaca que na formação dos “textos específicos voltados para os conhecimentos de História, Geografia, Sociologia e Filosofia”, foram inseridas “diversas alusões – explícitas ou não – a outros conhecimentos das Ciências Humanas que consideramos fundamentais para o Ensino Médio.” (pág.04) Estes conteúdos se referem segundo os PCNs, “a conhecimentos de Antropologia, Política, Direito, Economia e Psicologia”. A idéia, segundo o relatório, é definir, independentemente de como será a adequação das instituições escolares quanto a denominação e carga horária escolhidos para o fim de inclusão dos conteúdos enumerados, “afirmar que conhecimentos dessas cinco disciplinas são indispensáveis à formação básica do cidadão”. O documento inclui nestes “conhecimentos”, tanto os “principais conceitos e métodos com que operam”, como abordam “as situações concretas do cotidiano social, tais como o pagamento de impostos ou o reconhecimento dos direitos expressos em disposições legais”. Importa, portanto, permitir ao aluno decodificar léxicos próprios destas disciplinas, e os PCNs citam explicitamente “economês” e o “legalês”, como exemplos disto. Se o quarto volume aborda os conteúdos da disciplina desta Sociologia desta forma, no texto das Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais Ciências Humanas e suas Tecnologias, também editado pelo MEC, retoma o documento anterior com uma citação: “segundo os PCNEM, o estudo das Ciências Sociais no Ensino Médio tem como objetivo mais geral introduzir o aluno nas principais questões conceituais e metodológicas das disciplinas de Sociologia, Antropologia e Política. (p. 317)”; ainda que acrescente a estas temáticas conteúdos oriundos de outras disciplinas referentes aos “conceitos e métodos do Direito, da Economia e da Psicologia seriam também indispensáveis à formação básica do cidadão” (pág. 87).
Como no texto dos PCNs e das Orientações Educacionais Complementares as disciplinas vivem em estado de fluidez, achamos necessários abordar como alguns elementos teóricos conceituais são tratados, em especial a Antropologia. Visitaremos algumas marcações disciplinares a seguir:
Há várias citações acerca da Antropologia, as três primeiras retomam a idéia de incorporá-la ao conteúdo da “Área de Ciências Humanas e Sociais”, especificado um laço entre Antropologia, Política, Direito, Economia e Psicologia. Isto se dá por duas vezes na página 4 e uma vez na página 06. è nesta mesma página que se dá a seguir, a primeira tentativa de definir o campo da disciplina. Diz o texto: “a Antropologia, em sua vertente etnográfica, lançou-se à descrição dos povos “exóticos”, que a expansão econômica e política das grandes potências capitalistas necessitava submeter”. Esta primeira definição, exila a Antropologia na descrição dos povos ditos “exóticos”, ignora que embora a Antropologia na sua constituição disciplinar tenha tido no trabalho etnográfico acerca dos ditos “povos primitivos” ou “sociedades simples” a disciplina se consolidou exatamente por desenvolver todo um conjunto de monografias que teceram, ao longo de décadas parâmetros suficientes para mostrar que não haviam estas “simples sociedades”, pelo contrário: seus sistemas de parentesco, suas crenças, seus mitos e rituais são extremamente complexos, e também deve-se à perspectiva etnográfica o demonstrar que a humanidade e seus complexo processos mentais estão presentes em todas as sociedades humanas, e se algo as difere, isto se daria pelo isolamento geográfico que permitiu trocas culturais menos numerosas (LÈVI-STRAUSS: 1950).
A seguir o documento traça um paralelo, na página 12 entre Sociologia e Antropologia, ambas responsáveis, segundo o texto na “construção da identidade social e, sem negar os conflitos, a convivência pacífica. Dá-se especial destaque ao relativismo cultural proposto pelas correntes antropológicas surgidas após a Segunda Guerra Mundial, que advogam o direito de todos os povos e culturas construírem sua organização própria, respeitando da mesma forma os direitos alheios.” Se a tentativa era comparar o início da disciplina com a ascensão do relativismo cultural, talvez fosse mais interessante e elucidativo que isto fosse explicitado, para evitar marcar a disciplina antropológica ora pela tatuagem de ter servido aos interesses econômicos dominantes, “em sua vertente etnográfica”, ora por promover “ a convivência pacífica”. A etnografia na Antropologia abarca muitas outras direções, e se há antropologia das sociedades ditas simples, há a etnografia da sociedade dita complexa, que tem demonstrado um grande poder denunciador das diversas formas de dominação, quer se pretendam religiosas, científicas, políticas, econômicas, dentre outras.
Logo a seguir a Antropologia divide com a Geografia e a História o “papel a desempenhar na formação dos futuros cidadãos,entendendo-se estes quer como cidadãos de uma nação, quer como cidadãos do mundo”(pág 13). A Antropologia divide também com a história outro lugar no texto, na página 22, o de considerarem “a cultura não apenas em suas manifestações artísticas, mas nos ritos e festas, nos hábitos alimentares, nos tratamentos das doenças, nas diferentes formas que os vários grupos sociais, ao longo dos séculos, têm criado para se comunicar, como a dança, o livro, o rádio, o cinema, as caravelas, os aviões, a Internet, os tambores e a música”. construção e consolidação da cidadania plena. Em outra “vertente”, se considera a capacidade da Antropologia para fornecer “elementos teórico-metodológicos para se pensar as sociedades complexas, a partir de noções como experiências culturais (que, em certa medida, moldam nossos “mapas” de orientação para a vida social), rede de relações, papéis sociais, que informam o processo de constituição das identidades sociais, num constante fluxo, na maioria das vezes etnocêntrico, de diferenciações, entre “nós” e os “outros”. Um outro comentário na página 46 revela que a Antropologia “dada a sua materialização como escrita, muitas vezes de beleza e vigor poéticos incomparáveis” é muitas vezes “aproximada da Literatura”. Um pouco mais adiante esta “enunciação estético-expressiva” é associada ao relativismo na antropologia cultural. Entre a dominação colonial e o ato da bela escrita, os PCNs descrevem várias antropologias, e um pouco do que se espera de sua contribuição ao conteúdo da disciplina.
Nas Orientações Complementares a primeira aparição da Antropologia se dá no seguinte contexto: “A divisão de territórios entre as distintas ciências humanas é um exemplo de como, na organização disciplinar do conhecimento, não há demarcações absolutas, pois há mesmo aspectos comuns da geografia e da sociologia, ou também da história e da antropologia, tanto da perspectiva conceitual e/ou temática quanto de instrumentos analíticos. (pág. 15)” Mais adiante a contribuição antropológica é retomada (pág. 45), num trecho que expressa o vínculo da Filosofia coma disciplina antropológica: “Ao analisar os fundamentos e os fins da ação, parte-se das grandes áreas de reflexão da ética, estética, política, antropologia etc., a fim de compreender as formas de agir nos campos da moral, da arte, do exercício do poder, da técnica, da magia etc.” Caberia pensar aqui que a ética, a estética e a política são desde os primórdios da fundação da filosofia parte integrante da mesma?
Na página 72, o texto das Orientações Complementares aborda como na fronteira entre a História e a Antropologia “os sistema de relações, passaram a ser consideradas como partes da realidade social a ser investigada e analisada.” Segundo o texto, “a incorporação das representações do mundo social como objeto da História deve muito à Escola dos “Annales”, à Nova História e também às aproximações entre a História e a Antropologia que ampliaram o conceito de cultura nos trabalhos historiográficos, como mencionam os PCNEM:” Refletindo, na página 89 acerca das habilidades específicas do currículo de Sociologia, o texto aponta para “o conjunto das disciplinas curriculares que formam a área de Ciências Humanas e suas Tecnologias” no qual “a Sociologia engloba conhecimentos de Antropologia, Política, Direito, Economia e Psicologia.” O objetivo desta área seria, portanto,
“Identificar, analisar e comparar
a) os diferentes discursos sobre a realidade;
b)as explicações das Ciências Sociais, amparadas nos vários paradigmas teóricos, e as do senso comum.”

Além disso é necessário que seja capaz de:
Produzir novos discursos sobre as diferentes realidades sociais, a partir das observações e reflexões realizadas.

Nesta perspectiva, o texto acrescenta, na página seguinte:
“Nesse segmento, a contribuição da Antropologia é marcante, ao envolver os conceitos de cultura e de diversidade cultural. Ao lado disso, a possibilidade de ampliar a visão de mundo, desenvolver uma visão crítica da sociedade contemporânea e respeitar as diversidades culturais, sociais e pessoais vão permitir ao aluno a decodificação da complexa realidade social, levando-o a assumir atitudes mais críticas e atuantes na comunidade.

Mais tarde, quando sugere a organização dos eixos temáticos da disciplina, a Antropologia aparece para problematizar, ao lado da Filosofia o conceito de cultura.
É interessante notar como parece num primeiro momento distante toda a construção de uma disciplina no texto e os objetivos do Ensino Médio enumerados nas bases legais dos PCNs e dos documentos da agenda internacional. Apenas neste último texto fica claro como se pretende incorporar de alguma forma o saber antropológico no contexto, esperando que isto gere respeito e atuação social.
Esta colcha de comentários pretende contribuir para pensarmos como os PCNs “importam” (para privilegiar a fala de Florestan Fernandes) o saber Antropológico, e como fazem “em sua vertente etnográfica” acerca da mesma uma utilização da mesma, que parafraseando o próprio texto, buscaria a integração da mesma na “globalização econômica e política das grandes potências neoliberais necessitam submeter”... É preciso propor sim que os eixos temáticos sejam capazes de abarcar a contribuição antropológica, não apenas quando se trata de cultura, seja dito, mas qual antropologia? E para que?



[1] O Relatório UNESCO sofreu várias atualizações: a ultima está disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001298/129801por.pdf
[2] O relatório está disponível em http://www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/decjomtien
[3] O texto oficial está disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001335/133539por.pdf
[4] Publicado originalmente in: Jornal de Brasília, de 23/03/1989; e reproduzido na coletânea “O desafio educacional”, Florestan Fernandes. São Paulo: Cortez e Editora Autores Associados, 1989, pp. 22-24.
[5] http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/CienciasHumanas.pdf
[6] A agência das Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, possui 192 membros e foi criada em 1945. Seu site está disponível em http://www.unesco.org.br/
[7] Acerca desta divisão, há o documento Educação, trabalho e desemprego: novos tempos, novas perspectivas, que atende a esta elucidação. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001302/130294porb.pdf
[8] http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf
[9] http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/cienciah.pdf

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Fontes de pesquisa

Em português há um imenso material acerca das sagas em http://www.boulhosa.net/bibliografia.htm e outros links disponíveis em http://www.sobresites.com.br/vikings/sagas.htm%20e um guia de conjugação verbal em http://www.verbix.com/languages/oldnorse.shtml Um site interessante versa acerca da pesquisa de Ramon Llull, o navegador que relatou histórias destes povos em http://www.ramonllull.net/sw_studies/l_br/home.php. Acerca das navegações há http://www.stemnet.nf.ca/CITE/vikingships.htm, e a respeito do papel das mulheres nesta sociedade http://fl.essortment.com/vikingwoman_rbsn.htm e sobre a mitologia geral h´o portal http://www.religioustolerance.org/asatru.htm. acerca das runas consultei http://www.antalya-ws.com/futhark/ , http://www.luth.se/luth/present/sweden/history/viking_age/runes/ e http://www.arild-hauge.com/eindex.htm. Em português há http://www.cetico.hpg.ig.com.br/runas.html e http://www.runas.com.br/index1.php. A relação mais completa de fontes que encontrei, no entanto está, sem dúvida em http://www.boulhosa.net/bibliografia.htm

Outras precisosas: http://www.timelessmyths.com/norse/ring.html Cycle of the Ring e http://runeberg.org/ Project Runeberg

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

acerca dos labirintos...


Umberto Eco diferencia três tipos de labirintos: o primeiro, remota ao grego, no qual há um só caminho, da entrada ao centro; o segundo, maneirista, semelhante a uma árvore que se esgalha em seus ramos e raízes. Nesse tipo de labirinto há muitos caminhos falsos. A biblioteca, descrita em O Nome da Rosa, pertence a este tipo de labirinto. Por fim, um terceiro tipo de labirinto é descrito por ele, como rede ou rizoma, labirinto no qual todos os caminhos se interligam. Nele não há um centro, nem periferia. "Um labirinto (...) que conduza a toda parte e não leve a lugar algum"



Cf. Eco, U. O Pêndulo de Foucault, Rio de Janeiro: Editora Record, 1989

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Acerca dos rizomas

Não haverá nunca uma porta.
Estás dentro
E o alcácer abarca o universo
E não tem nem anverso nem reverso
Nem externo muro
nem secreto centro.
Não esperes que o rigor de teu caminho
Que teimosamente se bifurca em outro,
Que teimosamente se bifurca em outro,
Tenha fim.

(J.L. Borges — Labirinto, em Elogio da Sombra, 1969)

sábado, 3 de fevereiro de 2007

Memórias de um deportado

Uma resenha de “A Escrita ou a Vida[1]” de Jorge Semprun

"Não, eu não me considero um escritor de verdade. O único que eu sou
na verdade é um deportado".
Jorge Semprum[2]

Escrito em 1987, “A Escrita ou a Vida” foi revisado por sete vezes. Suas origens se confundem com o romance “A Grande viagem”, finalizado por Semprun em 1967, uma primeira tentativa de exorcizar a experiência de Buchenwald[3]. Mas a ficção não foi suficiente, e após o suicídio de Primo Levi, Semprun volta ao tema, neste livro tão belo quanto denso. A transmissão da experiência da travessia pela morte, na morte e com a morte não poderia ser mais humana. Criticado pelos que acreditam que um não judeu não pode capturar em sua totalidade a experiência do campo de concentração, Semprun revela neste livro exatamente o que todos os não judeus precisam e devem responder: “o que fazer com o cheiro de carne queimada?” A mudez de cinqüenta anos não calou a força da morte em Semprum, nem tornou a fumaça da chaminé inodora. O silêncio não é possível, a fumaça do crematório escolhe as palavras do texto, é ela que, em última análise, nos fala: não é possível esquecer, a morte já veio, e atravessou-se a morte. Um sobrevivente? Para Semprum, uma dúvida paira sobre esta questão. Alguém tinha realmente sobrevivido[4]?

Existe uma imortalidade desenvolta na assombração. E nela, escreve Semprun, ele vivia. Os fantasmas produzidos no crematório tumultuam as páginas do livro, e a barbárie da maldita fumaça, que expulsa passarinhos das florestas e a esperança das almas, nos interpela a responder que nunca mais. O pavor arregala nosso olhos, nos coloca aflitos, e podemos compreender com facilidade o pavor estampado no olhar dos três oficiais britânicos, relatado nos parágrafos iniciais de “A Escrita ou a Vida”. E também como a eles, este pavor nos intriga a mergulhar na leitura do texto, e seguindo os passos e sentimentos destes oficiais, presentes no dia da libertação do campo, assombramo-nos diante do silêncio da floresta, delatado por Semprun. Como eles, não fomos capazes de escutar este silêncio. Não estivemos lá, não percebemos nada. É Semprun que nos apavora, como a eles: acabaram os passarinhos, ele esclarece. E nós precisamos de palavras mais duras para entender: “cheiro de carne queimada, é isso!” Uma espécie de soluço atinge os oficiais britânicos. É um engulho, de horror, perplexidade e constatação. E ele nos acompanhará por cada página.

Em cada página, junto com este soluço, este engulho, um estranho cheiro se faz onipresente. Obsessivo, repugnante, insólito. Semprun afirma que bastaria fechar os olhos para as felicidades, diante dele todas tornadas insignificantes, para que ele reaparecesse. O cheiro reapareceria na memória, e a morte, neste odor fétido e adocicado, reviveria. É sobre este cheiro, é sobre esta fumaça que este livro se firma: e é como fumaça que o texto de Semprun invade a nossa alma, e nos impede de esquecer. É este cheiro que torna as felicidades, os pequenos relatos de prazer, de dança, de poesia, fragmentos, apenas fragmentos. “Basta se entregar. A realidade está ali, disponível. A palavra também[5].” A palavra deixa uma única dúvida: é possível realmente descrever? Não porque o campo de concentração seja indizível, nos explica Semprun, mas porque ele foi invivível. E o olhar dos oficiais britânicos traz a mesma invulnerável interrogação: como foi possível atravessar a morte, convivendo com a fumaça do crematório? Morrendo, afirma Semprun, morrendo, a cada dia, a cada hora, cada segundo. A morte está tão presente que o dia da libertação é visto como um sonho último, um devaneio que a antecede. Mas, não era um sonho. E o crematório seria fechado. Não haveria mais fumaça, podia-se pensar. Os prisioneiros estavam livres, podia-se deduzir. Não, não nos iludamos. Nunca a fumaça deixará de existir. Nunca estaremos livres. O presente estará sempre numa situação crítica, "o pior já aconteceu", como intitula Santiago Kovadloff[6] um ensaio sobre este tema.

A capilaridade do testemunho de Semprun é tão gigantesca que, muitas vezes, é preciso, interromper sua leitura para velar o horror que não nos dá trégua. Uma radiografia da morte se revela, num texto tão doloroso quanto belo, e nossa insignificante existência se retira para que nossa mente se pergunte: o que fazer? O que fazer “com o cheiro de carne queimada?” A tecnologia da morte, sua maquinaria é obra humana. E nos horroriza, ao mesmo tempo que nos desarticula. E o cheiro da fumaça arranca de nós um gemido. Semelhante ao gemido do judeu de Budapeste, que recita a oração dos mortos, o kaddish, no segundo capítulo do livro.

Apenas um lamento, desumano, gutural, irreal. Um quase cadáver canta, e seu canto, no meio de um amontoado de cadáveres é ouvido por Semprun e por Albert. O forno fora desligado há três dias, mas nem por isso a morte havia desligado-se de Buchenwald. Ela não estava mais pairando sobre o campo, na fumaça que, de forma diáfana, a materializava. Era a oração dos mortos, que surgia nos lábios de um sobrevivente, em ídiche. A morte falava ídiche, agora que já não cheirava fumaça. Deixando-se guiar pelo canto, rouco e murmurado, Semprun e Albert extraem, de uma montanha de cadáveres, um judeu ainda vivo. Ao lado dele, Semprun revisita memórias da guerra, ele foi soldado da resistência, enquanto Albert busca uma maca. Ajoelhado ao lado do sobrevivente judeu, sem saber o que fazer para mantê-lo vivo, Senprum o toma delicadamente em seus braços, e em seu ouvido, baixinho, conta a história de que se recordara, segundos antes, o assassinato de um soldado alemão. Mas permuta Julien, o soldado francês que está ao seu lado no episódio real, por Hans, um judeu imaginário, combatente, para fazer companhia ao judeu que agoniza em seus braços. Mais tarde, da enfermaria onde o judeu, salvo por eles, começa a recuperar-se, ele e Albert observam as aldeias da planície. Outras fumaças sobem em direção ao céu. Fumaças domésticas, diferentes das fumaças do crematório. Neste capítulo, a esperança retoma nossas almas, e os pássaros as florestas ao lado do campo.

É este binômio, pavor e esperança, que se faz presente em todo o texto de Semprun. Dele se deduzem outras polaridades, dilemas nascem aos milhares, ao interpelarmos a questão judaica. Ao mesmo tempo em que esta nos interpela a responder acerca do que é preciso fazer para que esta experiência cesse de se repetir. Como escreve Hannah Arendt[7]: "Antes disto diziamos, pois é, temos inimigos. É perfeitamente natural. -Por que não haveríamos de tê-los? Isto de agora era diferente. Era de fato como si se houvesse aberto um abismo... Isto não deveria ter acontecido. E não estou me referindo apenas ao número das vitimas. Refiro-me ao método, à fabricação de cadáveres e tudo o resto. Isto não deveria ter acontecido".

A tecnologia da morte, a indústria de cadáveres anuncia: o pior entrou no terreno do possível. E nos interpela à questão da sua repetição. O repetível do nazismo é a sua "ciência", os seus "métodos": campos de concentração repetiram-se pelo mundo, pessoas consideradas apátridas são retidas, sem direito a julgamento ou defesa. Um exemplo recente, para não citar milhares de outros, são os soldados talebãs prisioneiros do governo estadunidense. O princípio permanece. A maldita fumaça toma outras formas, outros estados, mas se faz presente. Sofrimentos, humilhações, golpes, passos de raça na lama, cachorros, a morte de amigos, todos os elementos das recordações de Semprun se fazem presentes a cada campo de concentração construído pela Terra. Em cada um deles, a política toma uma forma tanatológica, a limpeza étnica, ou moral, ou religiosa, perpetua o Shoa,[8] na medida em que aceita que parte da humanidade pode ser descartável: “pois é perfeitamente concebível e mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma humanidade altamente organizada e mecanizada chegue, de maneira democrática – isto é, por decisão da maioria –, à conclusão de que para a humanidade como um todo, convém liquidar certas partes de si mesma[9].”

Assim nasce o genocídio, um fato que não pode ser improvisado. Exige técnica, planejamento, burocracia, é preciso produzir em escala industrial a indiferença da opinião pública; como o nazismo fez com o judeu, criando um judeu conceitual que poderia e deveria ser odiado publicamente[10]. Depois é preciso criar fronteiras, neo-guetos, separar, aprisionar os que não foram sepultados pelos escombros de suas casas destruídas, ou de suas almas dilaceradas. É preciso então conduzi-los, como ovelhas, aos campos de refugiados, e transformar estes últimos, enfim, em campos de extermínio. Matadouros humanos. Como Buchenwald, estes matadouros existiram e existem. Não é uma vertigem, é uma solidão que traz “neve a todos os sóis e fumaça a todas as primaveras”, como escreveu Semprun, para terminar a primeira parte de seu relato.

Em 8 de março de 1992, Jorge Semprun retorna a Buchenwald, pela primeira vez, quarenta e dois anos depois. Ele lembra do tenente Rosenfeld, mais uma das histórias da primeira parte do livro, lembra dos pássaros expulsos pelos odores do forno crematório, e recita, na praça central do campo um poema, onde um verso afirma que “nunca mais a doçura será natural”. Recordações diversas, visita ao cemitério, encontros que terminam ou iniciam com uma exclamação: você voltou! Semprun se indaga: terá realmente voltado? É possível que um sobrevivente volte? É possível sequer que ele parta?

Os campos de concentração são um lugar de onde não se parte. Jamais se deixa um campo, este é o testemunho dos sobreviventes: Semprun, Levi, Frankel. Não se parte dele, parte-se nele, e parte se deixa nele, para sempre. Sem pátria, errante, nômade, diaspórico, deicida, o povo judeu foi levado pelo nazismo, e pela Europa, salvo pequenas exceções, aos capôs de concentração. No nazismo, a biopolítica gerara a tanatopolítica. O ideal de raça ária germânica pura criou a diabólica espiral ascendente: segregação, assimilação, eliminação. Sua exclusão social pela filosofia nazista, apontava a conservação da autonomia cultural, administrativa, jurídica, política e religiosa da comunidade judaica, como um sinal de inferioridade, e os nazistas deles fizeram piolhos e baratas, os insetos a serem eliminados. A emancipação, a assimilação e a incorporação mostravam-se promessas falsas. O nazismo revela-se então, não como um discurso de morte, mas como a morte de todo e qualquer discurso: havia espaço apenas para o ódio, e o ódio inspirava vidas humanas, aos milhares, e expirava fumaça nos crematórios.

As lembranças do campo dão lugar ao esquecimento, ou a uma tentativa de esquecer para continuar vivo. Disto trata a segunda parte de “A Escrita ou a Vida”. Há um filme com imagens de Buchenwald, evitadas ate então, numa defesa que tenta exorcizar a dor, perturbadora e desestruturante: era preciso recuperar um fôlego da vida, estivesse ela na “fraternidade, na leitura ou na beleza das mulheres” escreve Semprun. Uma delas, Lorène, é uma inesquecível amante do esquecimento, é deixada, junto com a Suíça, e a busca de memória e de esquecer a memória recomeçava.

A terceira parte do livro de Jorge Semprun inicia-se com o relato da morte de Primo Levi. Primo Levi começou a oferecer e escrever testemunhos radiográficos, quase que compulsivamente logo que saiu do campo. Estes foram os elementos que a maquinaria da morte nazista não supunha, e nela repousa nossa frágil esperança: há os sobreviventes, há os testemunhos. Primo Levi, tendo sobrevivido a Auschwitz, iria, muitos anos mais tarde, mergulhar no poço do elevador de seu edifício em Turim. A morte de Primo Levi confronta Semprun com a morte, novamente. Mas, agora não está ela no seu passado, na lembrança da fumaça do crematório, mas em seu futuro. A morte apanhava Primo Levi, suas recordações assumiram um caráter definitivamente atroz? Porque um sobrevivente escolhia o suicídio quarenta anos depois? A angústia se impusera, sem recurso e sem remédio, definitivamente. Nada era verdadeiro fora do campo, afirma Jorge Semprun. E no entanto, há o receio de que o campo se torne um sonho, dentro de um outro sonho, escreve Semprum, citando Levi. E há o receio de que neste sonho a fumaça do crematório se torne inodora. Levi não suportou esta hipótese. Como Cesare Pavese, também em Turim, encontrou uma “razão para se matar”.

Não é possível discutir as razões do suicídio de Primo Levi. Mas é possível perseguir a memória, é possível reler “A Escrita e a Vida”, e deixa que suas palavras encontrem nossa alma.
[1] Cf. Semprun, Jorge. A Escrita ou a Vida. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Todas as referências, exceto as que nomearem as fontes, pertecem a esta obra.
[2] Disponível em http://www.vespito.net/historia/semprun.html Entrevista par ao jornal El País, em 5 de junho de 1994.
[3] O campo de concentração de Buchenwald, construído en julho de 1937, sobre a colina de Ettersberg, nas proximidades de Weimar. Foi destinado primeiramente a prisioneiros de carácter político, opositores ao regime nazista, assim como também a judeus, Testemunhas de Jeová, homossexuais, ciganos, entre outros. No dia da libertação 95% dos prisioneiros eram estrangeiros.
[4] “Aliás, tínhamos realemnte sobrevivido?”(pág. 240)
[5] Pág. 22
[6] O poeta e filosófo argentino afirma: “somos o que fazemos com as perguntas que não têm respostas e, no entanto, têm sentido.”
[7] Nascida em Hannover, Alemanha, em 14 de outubro de 1906, Hannah Arendt doutorou-se em filosofia em 1928, na Universidade de Heidelberg. Com a chegada dos nazistas ao poder, em 1933, fugiu para Paris, onde trabalhou como assistente social atendendo a refugiados judeus. Estudou com Karl Jaspers e Martin Heidegger e, em 1940, casou-se com o professor de história da arte Heinrich Bluecher. A ocupação da França pelos nazistas obrigou-a a novo exílio, e em 1941 partiu para os Estados Unidos.
[8]
[9] Arendt, Hannah: As Origens do Totalitarismo, Companhia das Letras 1989, S. Paulo, pág. 332.
[10] Cf. Sartre, Jean Paul. A Questão Judaica.

Com o Shema nos Lábios


Uma resenha de “Argônio” de Primo Levi*


"Eu escrevo porque eu sou um químico. Meu trabalho proveu minha matéria-prima, o núcleo para o qual coisas unem... Química é uma luta com assunto, uma obra-prima
de racionalidade, uma parábola existencial... Química ensina vigilância
combinada com razão".

A atmosfera “construída” pelos esclarecidos e iluminados homens do Aufklãrung[1], pretendia oferecer ao homem, amputado de sua condição de sujeito por anos de obscurantismo e medo, uma maioridade[2], uma liberdade, até então, desconhecida. Nascia a uma nova idade, pretendia-se, e se em sua faceta mais exposta, permitia a vitória da razão, da ciência, da liberdade de expressão, em seu subterrâneo simbólico, nem tudo eram luzes: um processo desumano de contínua disciplinarização, confinava o homem num conceito preestabelecido de “normalidade”. Neste não havia espaço para a subjetividade, e a modernidade, inaugurada sobre o monopólio científico da verdade, julgou-lhe ré de pena capital. Neste contexto, teciam-se batalhas diversas: dualidades e dilemas proliferavam. Um dos mais importantes, sobre o qual grandes teóricos se debruçaram, estava o da questão judaica.

Dialogar com esta nova era, eis o desafio imposto ao judeu na Europa, principalmente desde a Revolução Francesa. Neste diálogo, se é que em algum momento houve de fato algum, o judeu era o Outro. Sem pátria, errante, nômade, diaspórico, deicida. Sob o olhar desconfiado dos que permitem sua presença “desconfortável”, eles estavam por toda a Europa, transversalmente inseridos em todos os povos, classes, falando todas as línguas, permanecendo, no entanto, judeus. Eternamente estrangeiros em locais onde habitavam a gerações.

São estes judeus, o tema de “Argônio”, um dos 21 textos de “A Tabela Periódica”, um livro de memórias e composições do escritor italiano Primo Levi. Cada texto recebe o nome de um elemento químico, uma referência à sua formação acadêmica. Em “Argônio”, Levi escreve sobre seus antepassados, avós e tios (esclarecendo que este último termo é atribuído a várias gerações de parentes), e sua sensibilidade imensurável mistura terna reverência, humor e reflexão, numa narrativa que toca com precisão, beleza e lucidez temas essenciais da tentativa de diálogo do judaísmo com a modernidade, silenciada em seu máximo momento, pelo campo de concentração. Primo Levi apresenta-se simplesmente como um observador, e as situações por eles descritas nos auxiliam na tentativa de compreender os dilemas que se perpetuaram, na medida em que também nos presenteiam com sua supremacia literária.

Utilizando as origens gregas que deram origem aos nomes dos gases nobres, “o Novo”, “o Oculto”, “o Inativo”, “o Estrangeiro”, para comparar estes elementos químicos, “inertes, tão satisfeitos em sua condição, que não interferem em nenhuma reação química, não se combinam com nenhum outro elemento”, aproxima-os de seus antepassados. É impossível não pensar na renovação constante da identidade judaica, uma identidade “armazenada”, circunscrita ao contorno talmúdico, paralela a sua exclusão social, e conservando desde a Diáspora a “consciência de sua identidade primitiva, reforçada graças a pontos de referência religiosa e culturais comuns e graças a redes de intercâmbio ativos”, como escreveu Victor Karady[3]. A conservação da autonomia cultural, administrativa, jurídica, política e religiosa da comunidade judaica, aponta para a esta atitude de abstenção, digna, voluntária ou aceita, à margem do grande rio da vida, observada por Primo Levi em seus antepassados, numa rejeição recíproca, uma barreira simétrica construída entre o judeu e a cristandade, numa clara expressão da vulnerabilidade gerada por ela.

Um das memoráveis histórias narradas por Primo Levi em “Argônio”, faz alusão às injúrias sofridas por seu pai, na saída da escola, quando as crianças zombavam de “suas orelhas de porco e burro”, uma referência arbitrária ao manto de oração, cujas dobras, seguiam preceitos da lei judaica, ignorados pelos zombadores, numa atitude ilustrativa do desprezo imposto ao desconhecido, ignorado, diferente. Mais tarde estes mantos foram utilizados pelos nazistas para confeccionar as roupas de baixo dos prisioneiros do campo, informa ele a seguir. A vulnerabilidade chegava ao máximo.

Num outro momento, a “tensão entre a vocação divina e a miséria cotidiana do exílio”, como pontua Primo Levi nos oferece reflexão sobre a dualidade deste povo, “escolhido”, e massacrado. À margem, numa Europa tencionada, onde o Estado-Nação tinha como premissa a territoriedade, vivia o judeu, sem pátria, sem estado, aludindo como “terra prometida”, o solo onde seus antepassados, “Abraão, Isaque e Jacó”, repousaram em algum momento há alguns milhares de anos. Surgiram a emancipação, a assimilação e a incorporação, promessas de cidadania da modernidade, ao judeu que abrisse mão de ser judeu. Herdeiro do judeu da corte, que negociava com o monarca privilégios e segurança para os judeus do reino, em troca de empréstimos que colhia nesta mesma massa judaica, o judeu emancipado possuía direitos civis, e via na assimilação garantias de ascensão social e sobrevivência. Mas, o que era um judeu emancipado? Um judeu que se convertera ao cristianismo, que ocupava cargos públicos, mas que permanecia judeu, embora, na própria comunidade judaica, já não encontrasse referência disto. Quem o “acusava” de ser judeu? O outro. Que atemorizado, diante do diferente, não via no judeu o centauro, mas o minotauro, seu inverso simbólico. A modernidade era um labirinto, e o caminho “teimosamente se bifurca em outro, e ainda teimosamente se bifurca em outro” como escreve e repete Borges[4]. O judeu era o banqueiro, o explorador, o estranho, de hábitos religiosos, alimentares questionáveis... Acusado, inclusive por seus membros, como por Karl Marx, o povo judeu se detinha na fronteira da sociedade, enquanto aos olhos dos Góis (gentios), o dinheiro era o Deus zeloso de Israel[5]. Este painel histórico revela a íntima relação entre judeus e governos, facilitada pela indiferença da burguesia, no final do século XIX, mas permite também perceber que na medida em que a comunidade judaica, já não financeiramente organizada, ainda permanecia aos olhos do mundo como o “judeu conceitual”, como afirmou Hannah Arendt[6]. Como grupo o povo judeu da Europa Ocidental se desintegrou junto com a idéia de Estado-Nação, no processo pós Primeira Guerra Mundial. Estava pronto o palco para a propagação do anti-semitismo, havia o ódio público contra o judeu, esclarecido por Sartre, havia a mentira dos nazistas, de que o judeu era o responsável pelas perdas econômicas da cristandade, havia o mito deicida, havia a resignação do judeu em aceitar o gueto, simbólico ou real, numa atitude milenar do povo acusado de roubar a primogenitura de seu irmão, desde Jacó.

Por que o judeu? Esta é a pergunta que não cala na minha alma, enquanto leio o texto de Primo Levi. Seria sua orgulhosa autodefinição de “povo escolhido”, “o povo de Israel”, para usar as palavras de Levi, suficiente para evocar o ódio, ou pelo menos a conivência com ele, de quase toda uma Europa? Não pretendo encontrar respostas fáceis, como a sugerida por Goldhagen[7], em Os carrascos voluntários de Hitler, que na tentativa de explicar o Holocausto, faz com o alemão, o que o nazismo fez do judeu, cria um “alemão conceitual.” Pretendo, antes, questionar porque nossos olhos o enxergam com tanto medo. Ou com tanta inveja, como aponta Hannah Arendt na descrição da ralé, parceira e cúmplice européia na tentativa de extermínio.

Weber, no início do século, que agora chamamos passado, no qual nascemos no entanto, relatou o homem disperso em esferas, que partem, amputam, segmentam. É cientista na academia, pai na família, animal no prostíbulo. Weber denuncia nossa jaula de ferro, crítica nossa divisão, fruto da nossa escolha eterna de construir dilemas, e escolher entre o objetivo e o subjetivo, o racional e o irracional, a arte e a ciência. Estamos todos partidos. Num certo sentido todas as buscas humanas, de nós, os gentios, se tornaram idólatras, politeístas, pagãs. A sacralidade da vida foi exilada na esfera privada, e nem nela a cultivamos de fato. Weber denuncia nosso “desencantamento”. E desencantados olhamos o caché como hábito alimentar inexplicável, o torá como um conjunto de leis obsoletas, o talmude como um contorno cultural grotesco, o rabino como um caso de esclerose, a resignação do judeu do campo como uma inexplicável e incômoda submissão, enfim, vamos tingindo o que nos é desconhecido com as cores que usamos para construir o nosso universo, desejosos que isto nos retire nossa frustração e nossas dúvidas.

Num certo sentido, o que mais nos incomodou no judeu foi sempre seu monoteísmo, afirma Lawrence Jaffe[8], um analista junguiano. Para ele o judaísmo é símbolo máximo da individuação, e sua recusa em aceitar os ícones da nossa civilização, fazendo de Maria, simplesmente mulher, como exemplifica Primo Levi, nos incomoda porque nos denuncia. É possível que odiemos tudo que denuncia o nosso fracasso, nós que construímos a modernidade para resolver o fracasso da religião em responder as nossas necessidade e a pós-modernidade para elucidar o fracasso da ciência na nossa capacidade em nos destruir, tão patente na Segunda guerra Mundial, e no Holocausto. A questão judaica nos interpela, a pelo menos, vermos, com lucidez, até aonde fomos capazes de ir, quanto espécie. Nossas vítimas, com o Shema[9] nos lábios, morrem na câmara de gás. Jorge Semprum em A escrita ou a vida, revela seu temor de que a fumaça do crematório, foz onde desembocou o rio da intolerância, da inveja, da incompreensão, da ausência total do que conceituamos como alteridade, se torne inodora.

Primo Levi não suportou esta hipótese. Como Cesare Pavese, também em Turim, encontrou uma “razão para se matar”. Levi escreveu: O objetivo da vida é criar a melhor defesa contra a morte. O povo judeu aceitou o monólogo imposto pela Modernidade, mas nem a emancipação, nem a assimilação, nem a incorporação, fúteis garantias, o protegeram do ódio da ralé, dos nazistas, do outro. Esta falta de tolerância continua atingindo o judeu, o negro, o homossexual, o diferente. Esta incompreensão os aliena da condição humana. Primo Levi comentando sobre a visita, em companhia de seu pai, à casa de sua avó, faz alusão a um bombom estragado, recebido sempre da mesma caixa, que ele ocultava no bolso. Era um ato cheio de vergonha, escreve Levi. É com esta mesma vergonha que eu termino esta resenha.

* LEVI, Primo. A tabela Periódica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994

[1] Termo alemão traduzido como Iluminismo.
[2] Cf. Imanuel Kant, “O que é o Iluminismo”.
[3] Karady, Victor. Los Judíos en la modernidad europea: experiencia de la violencia y utopía. S. XXI, Madri, 2000
[4] Cf. Borges,J.L. Labirinto Elogio da Sombra, 1969
[5] Cf. Marx, Karl. A questão judaica.
[6] Cf. As origens do totalitarismo. Cia das Letras, São Paulo, 1990.
[7] Goldhagen, Daniel Jonah: Os carrascos voluntários de Hitler: o povo alemão e o Holocausto. Cia das Letras, São Paulo, 2002.
[8] Cf. Jaffe, Lawrence: Libertando o coração. Pensamento, São Paulo, 1993.
[9] Oração, cujo enunciado diz, “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Deus”.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

mais Deleuze

Um rizoma não começa e nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e...e...e...” É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duras margens e adquire velocidade no meio...

DELEUZE, G. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro : Editora 34, 1995, pp.37