quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Reflexões acerca do Ensino de Sociologia (e da Antropologia) no Ensino Médio

escrevi este artigo há algum tempo. preciso revê-lo!

Entre Delors e os PCNs “a quem serve o ensino antropológico no Ensino Médio”?

INTRODUÇÃO
O presente texto pretende contribuir com a discussão acerca do material pedagógico para a disciplina Sociologia no Ensino Médio, no Brasil, partindo de duas reflexões: a primeira assume uma postura crítica diante da compreensão evidenciada por diversos órgãos acerca do Ensino Médio, e a segunda trata da disciplina inclusa recentemente no mesmo, dentro das especificidades para ela traçadas pelos documentos do Ministério da Educação e Cultura.
Na primeira parte do texto enfrentaremos a relação entre o Relatório Delors e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o Ensino Médio, mas também discutiremos o relatório final da Reunião Internacional de Especialistas sobre o Ensino Médio no Século XXI: Desafios, Tendências e Prioridades. A proposta é tecer um diálogo crítico com estas propostas, para pensar como a construção de políticas públicas, suas abrangências e sua efetivação, no Brasil, são respostas ás prioridades das agendas internacionais.Para situar cronologicamente o debate, a agenda internacional será discutida no presente texto partindo do Relatório Delors[1], concluído em 1996, (publicado no Brasil, com o título Educação: Um Tesouro a Descobrir, em 1998) e elaborado pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, coordenada por Jacques Delors. Este relatório é fruto de uma longa jornada de textos e discussões priorizadas pela UNESCO, desde a Conferência Mundial de Educação para Todos[2], datada de 1990, e que se amplia acerca da discussão a respeito do ensino médio na conferência Ensino Médio no Século XXI: Desafios, Tendências e Prioridades[3], realizada na China em 2001. A agenda nacional se referencia na Constituição brasileira, de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394), de 20 de dezembro de 1996 e nos diversos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), de 1997. É preciso pensar as propostas destes documentos e relatórios, problematizando-os também como agendas ideológicas, e pensando-os como é possível importar idéias sem avaliar a situação nacional.
Na época em que se estava construindo a discussão acerca da LDB, Florestan Fernandes, num artigo para o Jornal de Brasília[4], afirmara:
Em vista da próxima elaboração da nova lei de diretrizes e bases de educação nacional, é fundamental que se revejam as práticas imperantes em nosso ensino, especialmente no primeiro e segundo graus. Começamos por importar idéias francesas e alemãs, no fim do século passado; tentamos depois, também, “reproduzir” o que nos pareceu ser o ensino primário norte-americano e o enciclopedismo iluminista de segundo grau francês. Em ambas imitações falhamos. As instituições importadas não podem ser redefinidas, em seu significado, estruturas e funções fora do seu contexto psicossocial e cultural. [grifos nossos]

Na ocasião, o grande sociólogo brasileiro já advertia acerca da impossibilidade de se importar práticas de ensino, absolutamente distanciadas da realidade brasileira, que apenas ocasionaram, para Florestan Fernandes um imenso empobrecimento educacional: “empobrecemos as instituições, as práticas que elas engendram e o seu rendimento pedagógico”, afirmou ele, no mesmo artigo. É nesse mesmo sentido que esperamos tratar os textos que atendem a demanda internacional para evitar a mera “importação de práticas”: é preciso pensar o ensino, e aqui nos deteremos no ensino médio, enfatizando a realidade nacional, e nosso “contexto psicossocial e cultural” como advertiu Florestan Fernandes. Como pensar o Ensino Médio para que este possa participar da idéia do grande sociólogo brasileiro, defensor da necessidade de “construir uma escola auto-suficiente e autônoma, capaz de crescer por seus próprios dinamismos?”
Na segunda parte tentaremos situar como a inclusão da disciplina Sociologia se relaciona, nas diversas fontes documentais, com a proposta das agendas nacionais e internacionais, e como sua área de abrangência pode influenciar na discussão de toda esta temática, inclusive redirecionando as mesmas para o desafio proposto por Florestan Fernandes: “conferir à sala de aula a capacidade de operar como o experimentum crucis da prática escolar humanizada, de liberação do oprimido, de descolonização das mentes e corações dos professores e alunos, de integração de todos nas correntes críticas de vitalização da comunidade escolar e de transformação do meio social ambiente”. Para tanto, analisaremos como os diversos saberes disciplinares são relacionados no texto, produzido pelo MEC, Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais, Ciências Humanas e suas Tecnologias[5] que regula: “no conjunto das disciplinas curriculares que formam a área de Ciências Humanas e suas Tecnologias, a Sociologia engloba conhecimentos de Antropologia, Política, Direito, Economia e Psicologia”. Para efetivar esta análise, utilizamos o software de Pesquisa Qualitativa, o N*VIVO (versão 7), que permitiu relacionar quando temáticas destas disciplinas apareciam nos diversos textos, otimizando e aprofundando a análise. Devido aos limites deste trabalho, no entanto, apresentaremos aqui, apenas, as referentes à Antropologia.


1.1 AS AGENDAS INTERNACIONAIS E O ENSINO MÉDIO

A UNESCO[6] priorizou nas duas últimas décadas pesquisas e produção acerca da Educação, e disponibiliza em sua página muitos textos acerca do tema. Entre estes, o relatório final da Reunião Internacional de Especialistas sobre o Ensino Médio no Século XXI: Desafios, Tendências e Prioridades, que aconteceu em Beijin, República Popular da China, no ano de 2001, aponta para uma profunda necessidade de se pensar o processo educacional diante da “responsabilidade de todos os países na preparação dos estudantes para que possam atuar com competência ética e responsável em um mundo de rápidas transformações econômicas, sociais e culturais”. Neste documento a análise acerca do ensino médio parte de duas proposituras: a) O ensino médio deve merecer alta prioridade; b) Os objetivos e as funções do ensino médio devem ser redefinidos para o século XXI. O Ensino Médio seria, portanto um locus para a habilitar os estudantes em instrumentalizar as “rápidas transformações” do mundo dito contemporâneo, e o acesso ao ensino médio se torna prioritário para que esta demanda seja atendida. É preciso, informa o documento na página 22 atender a demandas do trabalho, e pensar como o ensino médio poderia permitir que o aluno se torne competente na “capacidade de se comunicar, de trabalhar em equipe, de adaptar-se às inovações, de ser renovador e criativo, de ter familiaridade com as novas tecnologias”. As quatro direções sugeridas pelo documento encontram os desejos dos orientadores do mesmo,e o ensino médio em sua “reforma” deveria considerar: “as novas condições de aprendizagem, a sociedade, a economia e o ambiente de trabalho”(pág19); produzindo por assim dizer jovens “capazes de decidir o seu próprio futuro, à luz de seus gostos e aptidões, e adquirir as competências que lhes permitirão ter êxito em sua vida adulta” (pág.15). É preciso priorizar ainda a construção de “sujeitos” capazes de uma revisão crítica dos objetivos e funções do ensino médio” (pág 7), pois, mister se faz lembrar, a reforma do Ensino Médio deve contribuir para os estudantes de modo que “sejam levadas em consideração as necessidades diversificadas dos alunos e para oferecer-lhes conhecimentos e saberes ao longo de toda a vida, inclusive o aprendizado profissional” (pág. 13). O documento orienta-se portanto na direção de se pensar o Ensino Médio como um espaço de aceleração da aprendizagem: é preciso aprender a aprender, para aprender a revisar criticamente o mundo, para decidir o próprio futuro, para aprender uma profissão. Inclusive quando o documento detalha a necessidade de se pensar uma educação mais geral ou uma mais técnica, é o foco na possibilidade do aprendizado em aprender que tecerá as escolhas nacionais e demarcará as viabilidades de cada proposta. Em sua página 45 o relatório afirma:
Já se percebe com clareza, em muitos países, uma tendência à aprendizagem ao longo de toda a vida, em que se modificam constantemente as características e exigências dos empregos e em que as pessoas passam a ter de transferir-se a cada momento entre os locais de ensino, de treinamento e de trabalho. Em vários países, o ensino médio já começou a ajustar-se a esta realidade, ora criando estruturas flexíveis e opções variadas em seus programas, ora reforçando os seus vínculos com o mundo do trabalho.

Nesse sentido o documento de Beijin se articula diretamente ao Relatório Delors, orientando o processo de pensar a educação como uma prática que “deve transmitir, de fato, de forma maciça e eficaz, cada vez mais saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases das competências do futuro”, ao mesmo tempo em que “compete-lhe encontrar e assinalar as referências que impeçam as pessoas de ficarem submergidas nas ondas de informações”, denominado, portanto, o processo educacional, simultaneamente como “um saber-fazer evolutivo” e “uma bússola”, que por um lado permite a aquisição continuada de dados e competências, intrumentalizando cognitivamente o indivíduo, e, por outro, diante dos novos mapas, permite que este mesmo indivíduo se direcione em sua busca de desenvolvimento, quer pessoal, quer voltado a projetos coletivos. O relatório Delors se arquiteta em quatro pilares do conhecimento – aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, aprender a ser. Nestes se resume a proposta dos diversos documentos produzidos acerca da educação: é preciso preparar o estudante para uma competente capacitação em se adequar às mudanças constantes no processo de trabalho, cada vez mais dinâmico e tecnológico. O texto evidencia ainda quão frágil é a “atualização” num mundo cercado de tão grandes e constantes mudanças, argumentando que apenas um “sujeito” capaz de “aprender a aprender” poderá se manter atualizado e caberia a educação viabilizar este aprendizado do aprendizado, que tornaria o mundo mais justo, mais ético e com menos assimetrias sociais. Esta idealização se vale dos valores do trabalho como forma de satisfação pessoal e desenvolvimento social e criativo do “sujeito”. Nesse sentindo a agenda internacional da UNESCO aponta para uma educação que seja “Básica, Técnica e Tecnológica[7]”, que se direcione a adaptabilidade do sujeito ao mercado de trabalho e a fluidez que a globalização exige deste sujeito, para garantir sua “empregabilidade”. Esperamos com isso ter demonstrado que há, de fato, uma agenda internacional, que pensa a educação como um facilitador de um processo cognitivo continuado, que serve, também aos interesses mercadológicos, econômicos e de produção da globalização e que o Ensino Médio é visto como uma necessidade destes interesses, e que a universalização do mesmo é uma exigência deste processo. Um outro documento acerca da Educação Técnica e Profissional, ETP, (na qual se inclui, evidentemente o Ensino Médio), se afirmou:
Mesmo que a responsabilidade do ETP seja antes de tudo competência do Estado numa economia de mercado moderna, a concepção da política de ETP e sua instauração devem ser assegurados por novas parcerias entre o Estado, empregadores, profissões, empresas, sindicatos e a sociedade. Esta parceria deve criar um quadro legislativo coerente para permitir o lançamento de uma estratégia nacional de mudanças na qual o Estado afora sua função de provedor do ETP, pode dirigir sua orientação e lhe dar configuração para facilitar, coordenar e assegurar a qualidade de forma que o ETP seja acessível a todos, identificando e realizando a missão do serviço público. A capacidade das parcerias deve ser fortalecida por dispositivos e meios de formação destinados a proporcionar as devidas competências.

O texto acima, retirado do relatório de 1999, Recomendações sobre Ensino Técnico e Profissional, produzido na conferência de Seul, revela a dinâmica e esperada associação entre o setor privado e público para favorecer aos interesses da “economia de mercado moderna” que pense a educação não mais sob a ótica do “encicopledismo francês”, mas sob o interesse do neoliberalismo globalizado. Mais uma vez, importaremos sem problematizar?

A IMPORTAÇÃO DA AGENDA INTERNACIONAL: A LDB, OS PCNS E O LUGAR DO ENSINO DE SOCIOLOGIA
Na Lei nº 9.394, que “estabelece as diretrizes e bases da educação nacional”, o artigo 35, trata das finalidades do ensino médio, priorizando neste: a)um lugar de aprendizado que ao mesmo tempo que aprofunda e retoma estudos anteriores, prepara para etapas posteriores; b) uma etapa de “preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando”; c) a construção de uma “formação ética” aliada ao “desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”; visando o “aprimoramento do educando como pessoa humana”; d) a apreensão de elementos “científico-tecnológicos dos processos produtivos”, teóricos e práticos, nas diversas disciplinas, que o capacitem para uma maior apreensão dos mesmos em etapas posteriores. Avaliando estas “finalidades” é possível pensar o ensino médio como um lugar de passagem, que ao mesmo tempo, retoma e antecipa, forma e prepara. Na LDB, no artigo seguinte se tratará das diretrizes do currículo do ensino médio, .e especificamente no parágrafo., inciso III, do § 1º se trata da Sociologia:
Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizadas de tal forma que ao final do Ensino Médio o educando demonstre:
III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania.”
Abria-se a porta para o retorno da Sociologia, enquanto disciplina, ao currículo do ensino médio brasileiro. Excluída do mesmo desde 1941 quando a Reforma Capanema desobriga sua presença nos cursos secundários, com exceção do denominado curso normal, que preparava professores para a Educação básica, a Sociologia vai perdendo força nos currículos, até sua retirada maciça dos mesmos no período militar, que em sua ideologia de civismo e culto à obediência e à lei via na disciplina uma matéria indesejável. É na década de 90 que a luta de associações, estudantes, professores, parlamentares se vê contemplada, com a efetivação do Parecer CNE/CEB Nº: 38/2006 do Conselho Nacional de Educação, que trata da Inclusão obrigatória das disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio. Tendo como relatores Cesar Callegari, Murílio de Avellar Hingel e Adeum Hilário Sauer, o Parecer reitera:
a importância e o valor da Filosofia e da Sociologia para um processo educacional consistente e de qualidade na formação humanística de jovens que se deseja sejam cidadãos éticos, críticos, sujeitos e protagonistas. Essa relevância é reconhecida não só pela argumentação dos proponentes, como por pesquisadores e educadores em geral, inclusive não filósofos ou não sociólogos.

Reconhece, ainda, “essa importância ao destacar nominalmente os conhecimentos de Filosofia e de Sociologia, dando-lhes valor essencial e não acidental, com caráter de finalidade do processo educacional do Ensino Médio. (artigo 36, § 1o, inciso III, da Lei nº 9.394/96)”, e destaca:
Sob a ótica da LDB, os conhecimentos de Filosofia e Sociologia são justificados como “necessários ao exercício da cidadania” (artigo 36, § 1o, inciso III, da Lei nº 9.394/96). Com os demais componentes da Educação Básica, devem contribuir para uma das finalidades do Ensino Médio, que é a de “aprimoramento como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (art. 35, inciso II, da LDB). E devem, ainda, mais especialmente, seguir a diretriz de “difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática” (art. 27, inciso I, da LDB).

Em sua conclusão o documento afirma que adotando-se, por parte do estabelecimento de ensino, segundo permite a lei específica, organização curricular flexível, deve-se incluir o “domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania”, adotando-se a organização curricular estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia. Mas, o que os PCNs, que orientam esta inclusão, entendem por Sociologia?
O primeiro volume dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que trata das bases Legais[8], se refere por quatro vezes vezes, o texto da LDB supracitado. Explicando-o o relatório informa:
Pela constituição dos significados de seus objetos e métodos, o ensino das Ciências Humanas e Sociais deverá desenvolver a compreensão do significado da identidade, da sociedade e da cultura, que configuram os campos de conhecimentos de História, Geografia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, Direito, entre outros. Nesta área incluir-se-ão também os estudos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania, para cumprimento do que manda a letra da lei. No entanto, é indispensável lembrar que o espírito da LDB é muito mais generoso com a constituição da cidadania e não a confina a nenhuma disciplina específica, como poderia dar a entender uma interpretação literal da recomendação do inciso III do Parágrafo primeiro do Artigo 36. Neste sentido, todos os conteúdos curriculares desta área, embora não exclusivamente dela, deverão contribuir para a constituição da identidade dos alunos e para o desenvolvimento de um protagonismo social solidário, responsável e pautado na igualdade política.

O texto portanto insere a disciplina Sociologia na área de Ciências Humanas e Sociais, que partilha o interesse didático pelo desenvolvimento da “compreensão do significado da identidade, da sociedade e da cultura”, cujas divisões disciplinares abarcariam “História, Geografia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, Direito, entre outros”. Caberia a esta área de “Ciências Humanas e Sociais”, cumprir “a letra da lei” pela inclusão da Sociologia e da Filosofia, esta última não enumerada na relação que antecede, para efetivar a exigência da LDB que prevê nestas duas disciplinas os estudos “ necessários ao exercício da cidadania”, ainda que, para os autores dos PCNs estes estudos sejam também contemplados não confinados “a nenhuma disciplina específica”, apontando para que TODOS os conteúdos desta área contribuam, de fato, para “a constituição da identidade dos alunos e para o desenvolvimento de um protagonismo social solidário, responsável e pautado na igualdade política”. Desta forma se define, no texto dos PCNs que tratam das abses legais, o sentido de exercício de cidadania: por um lado a formatação de uma “identidade dos alunos” e por outro um “protagonismo social solidário, responsável e pautado na igualdade política”.
A seguir, no quarto volume dos PCNs, que tratam especificamente das “Ciências Humanas e suas Tecnologias[9]”, a disciplina Sociologia é mais abrangentemente discutida: o texto destaca que na formação dos “textos específicos voltados para os conhecimentos de História, Geografia, Sociologia e Filosofia”, foram inseridas “diversas alusões – explícitas ou não – a outros conhecimentos das Ciências Humanas que consideramos fundamentais para o Ensino Médio.” (pág.04) Estes conteúdos se referem segundo os PCNs, “a conhecimentos de Antropologia, Política, Direito, Economia e Psicologia”. A idéia, segundo o relatório, é definir, independentemente de como será a adequação das instituições escolares quanto a denominação e carga horária escolhidos para o fim de inclusão dos conteúdos enumerados, “afirmar que conhecimentos dessas cinco disciplinas são indispensáveis à formação básica do cidadão”. O documento inclui nestes “conhecimentos”, tanto os “principais conceitos e métodos com que operam”, como abordam “as situações concretas do cotidiano social, tais como o pagamento de impostos ou o reconhecimento dos direitos expressos em disposições legais”. Importa, portanto, permitir ao aluno decodificar léxicos próprios destas disciplinas, e os PCNs citam explicitamente “economês” e o “legalês”, como exemplos disto. Se o quarto volume aborda os conteúdos da disciplina desta Sociologia desta forma, no texto das Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais Ciências Humanas e suas Tecnologias, também editado pelo MEC, retoma o documento anterior com uma citação: “segundo os PCNEM, o estudo das Ciências Sociais no Ensino Médio tem como objetivo mais geral introduzir o aluno nas principais questões conceituais e metodológicas das disciplinas de Sociologia, Antropologia e Política. (p. 317)”; ainda que acrescente a estas temáticas conteúdos oriundos de outras disciplinas referentes aos “conceitos e métodos do Direito, da Economia e da Psicologia seriam também indispensáveis à formação básica do cidadão” (pág. 87).
Como no texto dos PCNs e das Orientações Educacionais Complementares as disciplinas vivem em estado de fluidez, achamos necessários abordar como alguns elementos teóricos conceituais são tratados, em especial a Antropologia. Visitaremos algumas marcações disciplinares a seguir:
Há várias citações acerca da Antropologia, as três primeiras retomam a idéia de incorporá-la ao conteúdo da “Área de Ciências Humanas e Sociais”, especificado um laço entre Antropologia, Política, Direito, Economia e Psicologia. Isto se dá por duas vezes na página 4 e uma vez na página 06. è nesta mesma página que se dá a seguir, a primeira tentativa de definir o campo da disciplina. Diz o texto: “a Antropologia, em sua vertente etnográfica, lançou-se à descrição dos povos “exóticos”, que a expansão econômica e política das grandes potências capitalistas necessitava submeter”. Esta primeira definição, exila a Antropologia na descrição dos povos ditos “exóticos”, ignora que embora a Antropologia na sua constituição disciplinar tenha tido no trabalho etnográfico acerca dos ditos “povos primitivos” ou “sociedades simples” a disciplina se consolidou exatamente por desenvolver todo um conjunto de monografias que teceram, ao longo de décadas parâmetros suficientes para mostrar que não haviam estas “simples sociedades”, pelo contrário: seus sistemas de parentesco, suas crenças, seus mitos e rituais são extremamente complexos, e também deve-se à perspectiva etnográfica o demonstrar que a humanidade e seus complexo processos mentais estão presentes em todas as sociedades humanas, e se algo as difere, isto se daria pelo isolamento geográfico que permitiu trocas culturais menos numerosas (LÈVI-STRAUSS: 1950).
A seguir o documento traça um paralelo, na página 12 entre Sociologia e Antropologia, ambas responsáveis, segundo o texto na “construção da identidade social e, sem negar os conflitos, a convivência pacífica. Dá-se especial destaque ao relativismo cultural proposto pelas correntes antropológicas surgidas após a Segunda Guerra Mundial, que advogam o direito de todos os povos e culturas construírem sua organização própria, respeitando da mesma forma os direitos alheios.” Se a tentativa era comparar o início da disciplina com a ascensão do relativismo cultural, talvez fosse mais interessante e elucidativo que isto fosse explicitado, para evitar marcar a disciplina antropológica ora pela tatuagem de ter servido aos interesses econômicos dominantes, “em sua vertente etnográfica”, ora por promover “ a convivência pacífica”. A etnografia na Antropologia abarca muitas outras direções, e se há antropologia das sociedades ditas simples, há a etnografia da sociedade dita complexa, que tem demonstrado um grande poder denunciador das diversas formas de dominação, quer se pretendam religiosas, científicas, políticas, econômicas, dentre outras.
Logo a seguir a Antropologia divide com a Geografia e a História o “papel a desempenhar na formação dos futuros cidadãos,entendendo-se estes quer como cidadãos de uma nação, quer como cidadãos do mundo”(pág 13). A Antropologia divide também com a história outro lugar no texto, na página 22, o de considerarem “a cultura não apenas em suas manifestações artísticas, mas nos ritos e festas, nos hábitos alimentares, nos tratamentos das doenças, nas diferentes formas que os vários grupos sociais, ao longo dos séculos, têm criado para se comunicar, como a dança, o livro, o rádio, o cinema, as caravelas, os aviões, a Internet, os tambores e a música”. construção e consolidação da cidadania plena. Em outra “vertente”, se considera a capacidade da Antropologia para fornecer “elementos teórico-metodológicos para se pensar as sociedades complexas, a partir de noções como experiências culturais (que, em certa medida, moldam nossos “mapas” de orientação para a vida social), rede de relações, papéis sociais, que informam o processo de constituição das identidades sociais, num constante fluxo, na maioria das vezes etnocêntrico, de diferenciações, entre “nós” e os “outros”. Um outro comentário na página 46 revela que a Antropologia “dada a sua materialização como escrita, muitas vezes de beleza e vigor poéticos incomparáveis” é muitas vezes “aproximada da Literatura”. Um pouco mais adiante esta “enunciação estético-expressiva” é associada ao relativismo na antropologia cultural. Entre a dominação colonial e o ato da bela escrita, os PCNs descrevem várias antropologias, e um pouco do que se espera de sua contribuição ao conteúdo da disciplina.
Nas Orientações Complementares a primeira aparição da Antropologia se dá no seguinte contexto: “A divisão de territórios entre as distintas ciências humanas é um exemplo de como, na organização disciplinar do conhecimento, não há demarcações absolutas, pois há mesmo aspectos comuns da geografia e da sociologia, ou também da história e da antropologia, tanto da perspectiva conceitual e/ou temática quanto de instrumentos analíticos. (pág. 15)” Mais adiante a contribuição antropológica é retomada (pág. 45), num trecho que expressa o vínculo da Filosofia coma disciplina antropológica: “Ao analisar os fundamentos e os fins da ação, parte-se das grandes áreas de reflexão da ética, estética, política, antropologia etc., a fim de compreender as formas de agir nos campos da moral, da arte, do exercício do poder, da técnica, da magia etc.” Caberia pensar aqui que a ética, a estética e a política são desde os primórdios da fundação da filosofia parte integrante da mesma?
Na página 72, o texto das Orientações Complementares aborda como na fronteira entre a História e a Antropologia “os sistema de relações, passaram a ser consideradas como partes da realidade social a ser investigada e analisada.” Segundo o texto, “a incorporação das representações do mundo social como objeto da História deve muito à Escola dos “Annales”, à Nova História e também às aproximações entre a História e a Antropologia que ampliaram o conceito de cultura nos trabalhos historiográficos, como mencionam os PCNEM:” Refletindo, na página 89 acerca das habilidades específicas do currículo de Sociologia, o texto aponta para “o conjunto das disciplinas curriculares que formam a área de Ciências Humanas e suas Tecnologias” no qual “a Sociologia engloba conhecimentos de Antropologia, Política, Direito, Economia e Psicologia.” O objetivo desta área seria, portanto,
“Identificar, analisar e comparar
a) os diferentes discursos sobre a realidade;
b)as explicações das Ciências Sociais, amparadas nos vários paradigmas teóricos, e as do senso comum.”

Além disso é necessário que seja capaz de:
Produzir novos discursos sobre as diferentes realidades sociais, a partir das observações e reflexões realizadas.

Nesta perspectiva, o texto acrescenta, na página seguinte:
“Nesse segmento, a contribuição da Antropologia é marcante, ao envolver os conceitos de cultura e de diversidade cultural. Ao lado disso, a possibilidade de ampliar a visão de mundo, desenvolver uma visão crítica da sociedade contemporânea e respeitar as diversidades culturais, sociais e pessoais vão permitir ao aluno a decodificação da complexa realidade social, levando-o a assumir atitudes mais críticas e atuantes na comunidade.

Mais tarde, quando sugere a organização dos eixos temáticos da disciplina, a Antropologia aparece para problematizar, ao lado da Filosofia o conceito de cultura.
É interessante notar como parece num primeiro momento distante toda a construção de uma disciplina no texto e os objetivos do Ensino Médio enumerados nas bases legais dos PCNs e dos documentos da agenda internacional. Apenas neste último texto fica claro como se pretende incorporar de alguma forma o saber antropológico no contexto, esperando que isto gere respeito e atuação social.
Esta colcha de comentários pretende contribuir para pensarmos como os PCNs “importam” (para privilegiar a fala de Florestan Fernandes) o saber Antropológico, e como fazem “em sua vertente etnográfica” acerca da mesma uma utilização da mesma, que parafraseando o próprio texto, buscaria a integração da mesma na “globalização econômica e política das grandes potências neoliberais necessitam submeter”... É preciso propor sim que os eixos temáticos sejam capazes de abarcar a contribuição antropológica, não apenas quando se trata de cultura, seja dito, mas qual antropologia? E para que?



[1] O Relatório UNESCO sofreu várias atualizações: a ultima está disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001298/129801por.pdf
[2] O relatório está disponível em http://www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/decjomtien
[3] O texto oficial está disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001335/133539por.pdf
[4] Publicado originalmente in: Jornal de Brasília, de 23/03/1989; e reproduzido na coletânea “O desafio educacional”, Florestan Fernandes. São Paulo: Cortez e Editora Autores Associados, 1989, pp. 22-24.
[5] http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/CienciasHumanas.pdf
[6] A agência das Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, possui 192 membros e foi criada em 1945. Seu site está disponível em http://www.unesco.org.br/
[7] Acerca desta divisão, há o documento Educação, trabalho e desemprego: novos tempos, novas perspectivas, que atende a esta elucidação. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001302/130294porb.pdf
[8] http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf
[9] http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/cienciah.pdf

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