quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Diante da dor dos judeus

Adriana Dias

O enredo deste ano da escola de samba Viradouro, do Rio de Janeiro, cujo título "É de Arrepiar", pretende recordar, como descreve em sua poética, "dissabores, infelicidades, vidas perdidas nesse mundo de maldade". Quer desfilar, ainda dentro deste discurso, um carro alegórico representando o Holocausto, o extermínio de 6 milhões de judeus pelos nazistas. Procurada, anteriormente, pelo carnavalesco e o presidente da Unidos do Viradouro, a Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro se posicionou desfavorável à maneira como aquela escola trataria um tema tão delicado, que evoca dores e marcas muitos profundas nos judeus, e outros mortos nos campos nazistas, em todo o mundo. Alguns formadores de opinião advogam o "direito dos carnavalescos de decidirem acerca do que desfilam" no Sambódromo.

Neste momento me recordo das dezenas de sobreviventes do Holocausto que conheci: a percepção de tão hedionda violência nos preenche de terror. A violência do holocausto não marcou apenas seus corpos, as cicatrizes da alma são ainda mais profundas: como escreveu Jorge Semprun, ninguém sai exatamente vivo de um campo de concentração.

A Unidos do Viradouro tem, ao que tudo indica, uma boa intenção: quer, como escreveu a FIERJ em nota oficial, “usar a arte como denúncia de fatos que marcaram de forma terrível a História”. A questão é que na mesma nota a Federação Israelita considera “totalmente inadequado e mesmo desrespeitoso à memória de dezenas de milhões de mortos, incluindo aí os 6 milhões de judeus”.

A maior das questões reside em que tipo de memória se deseja envolver as marcas do genocídio nazista. Como escreveu Susan Sontag, em Diante das dor dos outros, "a compreensão da guerra entre pessoas que não vivenciaram uma guerra é, agora, sobretudo um produto do impacto dessas imagens." Das imagens criadas para esta guerra, das diversas formas possíveis. Diante da dor dos judeus é preciso repensar o proposto pela Viradouro.

Não é uma questão de propriedade, no sentido emprestado a ela por um jornalista que defendendo a "liberdade artística da Viradouro", afirmou: "os judeus não são donos do Holocausto". Frase infeliz. Os judeus arcam com as dores do Holocausto, nas peles, nas almas, nas vidas. Por isso a dor é deles, e isto, quem não viveu não pode entender.

Quero concluir com mais de Susan Sontag: ""Nós" – esse "nós" é qualquer um que nunca passou por nada parecido com o que eles sofreram – não compreendemos. Nós não percebemos. Não podemos na verdade, imaginar como é isso. Não podemos imaginar como é pavorosa, como é aterradora a guerra; e como ela se torna normal. Não podemos compreender, não podemos imaginar. É isso o que todo soldado, todo jornalista, todo socorrista e todo observador independente que passou algum tempo sob o fogo da guerra e teve a sorte de driblar a morte que abatia outros, à sua volta, sente de forma obstinada. E eles têm razão."

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Escreveu Borges

Sempre imaginei que o paraíso será uma espécie de biblioteca.

Mais Borges em http://www.fcsh.unl.pt/borgesjorgeluis/index.htm

Laura Leets ...

Increasingly, hate groups have used the Internet to express their viewpoints, sell their paraphernalia, and recruit new members. This study explored the effectiveness of persuasive storytelling found on White supremacist Web pages. One hundred eight adolescents participated in a longitudinal study (pretest, Time 1, Time 2) conducted online. A 3 (receptivity: negatively inclined, neutral, predisposed) x 2 (narrative: high vs. low perceived) x 2 (message explicitness: implicit vs. explicit) factorial design found that immediately following exposure, high-narrative and implicit messages were more persuasive than low-narrative and explicit messages. Interestingly, high-narrative and implicit effects decayed, whereas low-narrative and explicit message effects endured or increased slightly over time. In addition, people's receptivity interacted with the message factors to further mediate persuasion. For example, disagreeing individuals resisted low-narrative, explicit messages significantly more than any other condition. The article concludes with a discussion of the social implications of these findings.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Vai entender...


Profundidade e excelência

Hoje eu contactei um blog, que discute muito seriamente as relações entre Direito e Novas Tecnologias, um tema tão dificil quanto fascinante. Organizado pelo Dr. Alexandre Atheniense, um pesquisador comprometido com a excelência necessária (e rara) ao tema.

Com 20 anos de atuação profissional, o Dr. Alexandre Atheniense aé especialista na área do Direito de Novas Tecnologias, visando propiciar aos seus clientes resultados satisfatórios com a observância dos princípios éticos inerentes ao exercício profissional. É autor do livro Internet e o Direito.

O blog está disponível no endereço http://www.alexandreatheniense.com.br/

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Para Mauro Almeida







Declaration of the Stockholm International Forum on the Holocaust

The Stockholm International Forum on the HolocaustA conference on education remembrance and research26-28 January 2000

We, High Representatives of Governments at the Stockholm International Forum on the Holocaust, declare that:

1. The Holocaust (Shoah) fundamentally challenged the foundations of civilization. The unprecedented character of the Holocaust will always hold universal meaning. After half a century, it remains an event close enough in time that survivors can still bear witness to the horrors that engulfed the Jewish people. The terrible suffering of the many millions of other victims of the Nazis has left an indelible scar across Europe as well.

2. The magnitude of the Holocaust, planned and carried out by the Nazis, must be forever seared in our collective memory. The selfless sacrifices of those who defied the Nazis, and sometimes gave their own lives to protect or rescue the Holocausts victims, must also be inscribed in our hearts. The depths of that horror, and the heights of their heroism, can be touchstones in our understanding of the human capacity for evil and for good.

3. With humanity still scarred by genocide, ethnic cleansing, racism, anti-semitism and xenophobia, the international community shares a solemn responsibility to fight those evils. Together we must uphold the terrible truth of the Holocaust against those who deny it. We must strengthen the moral commitment of our peoples, and the political commitment of our governments, to ensure that future generations can understand the causes of the Holocaust and reflect upon its consequences.

4. We pledge to strengthen our efforts to promote education, remembrance and research about the Holocaust, both in those of our countries that have already done much and those that choose to join this effort.

5. We share a commitment to encourage the study of the Holocaust in all its dimensions. We will promote education about the Holocaust in our schools and universities, in our communities and encourage it in other institutions.

6. We share a commitment to commemorate the victims of the Holocaust and to honour those who stood against it. We will encourage appropriate forms of Holocaust remembrance, including an annual Day of Holocaust Remembrance, in our countries.

7. We share a commitment to throw light on the still obscured shadows of the Holocaust. We will take all necessary steps to facilitate the opening of archives in order to ensure that all documents bearing on the Holocaust are available to researchers.

8. It is appropriate that this, the first major international conference of the new millennium, declares its commitment to plant the seeds of a better future amidst the soil of a bitter past. We empathize with the victims suffering and draw inspiration from their struggle. Our commitment must be to remember the victims who perished, respect the survivors still with us, and reaffirm humanitys common aspiration for mutual understanding and justice.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Intolerância virtual Pesquisa aponta crescimento do número de páginas com temática neonazista na internet


Uma das 12,6 mil páginas da internet com temática neonazista, racista ou revisionista identificadas pela equipe da Unicamp. A página, denunciada e retirada do ar, hoje apresenta conteúdo anti-nazista.Nos últimos anos, cresceu o número de páginas na internet, blogs e chats destinados à exaltação da superioridade da ‘raça’ ariana e à disseminação do ódio a outras etnias e grupos sociais, como homossexuais e judeus. Uma análise detalhada do discurso ideológico presente em páginas virtuais neonazistas, feita por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostra como elas conseguem conquistar cada vez mais simpatizantes.
O estudo, fruto da tese de mestrado da antropóloga Adriana Dias no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, identificou quem são os neonazistas na internet, como eles operam na rede e em que páginas se encontram. Segundo a pesquisadora, há na internet mais de doze mil páginas e aproximadamente 200 comunidades no Orkut (uma página virtual de relacionamentos) associadas a temáticas racistas, neonazistas e revisionistas (que negam a existência do holocausto na Segunda Guerra Mundial). Para a pesquisa, Dias selecionou as páginas virtuais mais acessadas, com maior visibilidade e que estão disponíveis em inglês, português e espanhol. Segundo ela, um dos maiores desafios foi driblar as estratégias usadas para dificultar a identificação imediata do conteúdo.
“Os sites racistas são em geral muito densos, tanto em hipertextualidade (há páginas com mais de 500 links), como no uso de multimídia (ícones, vídeos e imagens ocupam dezenas de bytes). Há muito mais links internos do que externos, o que dificulta a localização de grande parte do conteúdo, geralmente de caráter mais agressivo, por meio de motores de busca”, explica Dias. Para superar esse obstáculo, ela usou em sua pesquisa uma ferramenta de análise de tráfego que permite identificar links mais internos e páginas de difícil acesso.
Rede de articulação
O aumento significativo no número de páginas virtuais neonazistas mostra que a internet é uma das grandes facilitadoras da comunicação e articulação entre os diversos grupos ou ativistas de movimentos desse tipo. Ela possibilita a formação de uma rede de apoio entre eles e ainda confere o anonimato necessário para que seus integrantes e suas ações não sejam identificados. Segundo Dias, além de irradiar idéias racistas, neonazistas e revisionistas, a internet faz com que a cada dia esses movimentos conquistem mais adeptos, principalmente entre os jovens. A pesquisadora ressalta que esses grupos constroem ou se apropriam de discursos para validar suas visões e suas ações. Um deles é o discurso genômico, que afirma que os indivíduos pertencentes à ‘raça ariana’ possuem genes superiores e foram escolhidos por Deus para promover o desenvolvimento da humanidade e hierarquizar o mundo.

A página norte-americana National Alliance, que se preocupa com a atuação política na luta pelos ‘direitos brancos’, exibe a imagem do deus nórdico Thor, mito apropriado pelo movimento nazista para legitimar a 'raça' ariana. Em outra vertente, há o discurso mitológico, que se apropria de mitos já existentes, como o de Thor (deus da mitologia germânica), o da suástica e o da runa algiz (letra do alfabeto nórdico), e cria outros, como o do sangue ariano, para dar força à ideologia nazista. “O deus nórdico Thor é apontado como o responsável pela legitimação da 'raça ariana', a suástica é usada como símbolo da identidade ariana e da pureza racial e a runa algiz é utilizada para a proteção da família”, explica Dias. Segundo a antropóloga, no mito do sangue ariano estaria a chave para compreender os mitos criados para defender a superioridade biológica, psíquica, cultural e espiritual da ‘raça’ ariana sobre outros povos. É ainda esse mito do sangue o responsável pela suposta conexão transcendental entre os membros da ‘raça’ ariana, que os faz desprezar o conceito de nação. “Para eles, a raça é a nação.”
A análise evidenciou as diferentes abordagens existentes entre os grupos neonazistas. Uma das mais correntes é a de que a raça ariana estaria ameaçada pela mistura racial. “Esses grupos têm uma ideologia de ódio ao outro, ao não ariano, principalmente a negros e judeus. O discurso adquire um tom religioso e messiânico, em que a raça ariana precisa ser preservada a todo custo”, afirma Dias. Após o estudo, muitas páginas virtuais de conteúdo neonazista foram denunciadas e até retiradas do ar. A antropóloga alerta que a única forma de combater a formação do pensamento racista e discriminatório é a construção de uma educação conscientizadora que desmitifique o conceito de raça e pregue a solidariedade entre os povos.
Rachel Rimas
Ciência Hoje On-line 08/01/2008

domingo, 6 de janeiro de 2008

Sermão do Espírito Santo

Padre António Vieira.

Ille vos docebil omnia, quaecumque dixero vobis (1).

I
A sexta vez é hoje, que no ano presente e nos dois passados me ouvis pregar este mesmo mistério. Mas não será esta somente a sexta vez em que vós e eu experimentamos o pouco fruto com que esta terra responde ao que se devera esperar de tão continuada cultura. Se a doutrina que se semeia nela fora nossa, achada estava a causa na fraqueza de nossas razões, no desalento de nossos afetos e na eficácia mal viva de nossas palavras; mas não é assim: Sermonem quem audistis non est meus, sed ejus qui misit me, Patris (Jo. 14, 24): O sermão que ouvistes não é meu, senão do Eterno Padre que me mandou ao mundo — diz Cristo neste Evangelho — e o mesmo podem dizer todos os pregadores, ao menos os que ouvis deste lugar. Os sermões, as verdades, a doutrina que pregamos não é nossa, é de Cristo. Eles a disse, os evangelistas a escreveram, nós a repetimos. Pois, se estas repetições são tantas e tão continuadas, e a doutrina que pregamos não é nossa, senão de Cristo, como fazem tão poucos progressos nela, e como aprendem tão pouco os que a ouvem? Nas palavras que propus temos a verdadeira resposta desta tão nova admiração.

Ille vos docebit omnia quaecumque dixero vobis (2): O Espírito Santo — diz Cristo — vos ensinará tudo o que eu vos tenho dito. — Notai a diferença dos termos, e vereis quanto vai de dizer a ensinar. Não diz Cristo: o Espírito Santo vos dirá o que eu vos tenho dito; nem diz: o Espírito Santo vos ensinará o que eu vos tenho ensinado; mas diz: O Espírito Santo vos ensinará o que eu vos tenho dito, porque o pregador, ainda que seja Cristo, diz: o que ensina é o Espírito Santo. Cristo diz: Quaecumque dixero vobis; o Espírito Santo ensina: Ille vos docebit omnia. Omestre na cadeira diz para todos, mas não ensina a todos. Diz para todos, porque todos ouvem; mas não ensina a todos, porque uns aprendem, outros não. E qual é a razão desta diversidade, se o mestre é o mesmo e a doutrina a mesma? Porque, para aprender, não basta só ouvir por fora: é necessário entender por dentro. Se a luz de dentro é muita, aprende-se muito; se pouca, pouco; se nenhuma, nada. O mesmo nos acontece a nós. Dizemos, mas não ensinamos, porque dizemos por fora; só o Espírito Santo ensina, porque alumia por dentro: Ministeria forinsecus adjutoria sunt, cathedram in caelo habet, quia corda docet, diz Santo Agostinho. Por isso até o mesmo Cristo, pregando tanto, converteu tão pouco. Se o Espírito Santo não alumia por dentro, todo o dizer, por mais divino que seja, é dizer: Quaecumque dixero vobis; mas se as vozes exteriores são assistidas dos raios interiores da sua luz, logo qualquer que seja o dizer, e de quem quer que seja, é ensinar, porque só o Espírito Santo é o que ensina: Ille vos docebit.

Por que vos parece que apareceu o Espírito Santo hoje sobre os apóstolos, não só em línguas, mas em línguas de fogo? Porque as línguas falam, o fogo alumia. Para converter almas, não bastam só palavras: são necessárias palavras e luz. Se quando o pregador fala por fora, o Espírito Santo alumia por dentro, se quando as nossas vozes vão aos ouvidos, os raios da sua luz entram ao coração, logo se converte o mundo. Assim sucedeu em Jerusalém neste mesmo dia. Sai S. Pedro do cenáculo de Jerusalém, assistido deste fogo divino, toma um passo do profeta Joel, declara-o ao povo, e, sendo o povo a que pregava aquele mesmo povo obstinado e cego, que poucos dias antes tinha crucificado a Cristo, foram três mil os que naquela pregação o confessaram por verdadeiro Filho de Deus e se converteram à fé. Oh! admirável eficácia da luz do Espírito Santo! Oh! notável confusão vossa e minha! Um pescador, com uma só pregação e com um só passo da Escritura, no dia de hoje converte três mil infiéis, e eu, no mesmo dia, com cinco e com seis pregações, com tantas Escrituras, com tantos argumentos, com tantas razões, com tantas evidências, não posso persuadir um cristão. Mas a causa é porque eu falo e o Espírito Santo, por falta de disposição nossa, não alumia. Divino Espírito, não seja a minha indignidade a que impida a estas almas, por amor das quais descestes do céu à terra, o fruto de vossa santíssima vinda: Veni Sancte Spiritus, et emitte caelitus lucis tuae radium: Vinde, Senhor, e mandai-nos do céu um raio eficaz de vossa luz — não pelos nossos merecimentos, que conhecemos quão indignos são, mas pela infinita bondade vossa, e pela intercessão de vossa esposa santíssima. Ave Maria.


II
Ille vos docebit omnia. Diz Cristo aos apóstolos que o Espírito Santo os ensinará. E ser Cristo, ser o Filho de Deus o que diz estas palavras, faz segunda dificuldade à inteligência e razão delas. Ao Filho de Deus, que é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, atribui-se a sabedoria; ao Espírito Santo, que é a terceira Pessoa, o amor; e suposto isto parece que a Pessoa do Espírito Santo havia de encomendar o ofício de ensinar à Pessoa do Filho, e não o Filho ao Espírito Santo. Que o amor encomende o ensinar à sabedoria, bem está; mas a sabedoria encomendar o ensinar ao amor: Ille vos docebit? Neste caso sim. Porque para ensinar homens infiéis e bárbaros, ainda que é muito necessária a sabedoria, é muito mais necessário o amor. Para ensinar, sempre é necessário amar e saber, porque quem não ama não quer, e quem não sabe não pode; mas esta necessidade de sabedoria e amor não é sempre com a mesma igualdade. Para ensinar nações fiéis e políticas, é necessário maior sabedoria que amor; para ensinar nações bárbaras e incultas, é necessário maior amor que sabedoria. A segunda Pessoa, o Filho, e a terceira, o Espírito Santo, ambas vieram ao mundo a ensinar e salvar almas; mas a missão do Filho foi a uma nação fiel e política, e a missão do Espírito Santo foi principalmente a todas as nações incultas e bárbaras. A missão do Filho foi só a uma nação fiel e política, porque foi só aos filhos de Israel, como o mesmo Senhor disse: Non sum missus nisi ad oves quae perierunt domus Israel(3).

A missão do Espírito Santo foi principalmente às nações incultas e bárbaras, porque foi para todas as nações do mundo, que por isso desceu e apareceu em tanta diversidade de línguas: Apparuerunt dispertitae linguae(4). E como a primeira missão era para uma nação política, e a segunda para todas as nações bárbaras, por isso foi muito conveniente que à primeira viesse uma Pessoa divina, a quem se atribui, não o amor, senão a sabedoria, e que à segunda viesse outra pessoa, também divina, a quem se atribui, não a sabedoria, senão o amor. Para ensinar homens entendidos e políticos, pouco amor é necessário: basta muita sabedoria; mas para ensinar homens bárbaros e incultos, ainda que baste pouca sabedoria, é necessário muito amor.
Desceu hoje o Espírito Santo em línguas, para formar aos apóstolos mestres e pregadores, mas mestres e pregadores de quem? O mesmo Cristo que os mandou pregar o disse: Euntes in mundum universum, praedicate Evangelium omni creaturae (Mc. 16,15): Ide por todo o mundo, e pregai a toda a criatura. — A toda a criatura, Senhor? — É reparo de S. Gregório papa. — Bem sei eu que são criaturas os homens, mas os brutos animais, as árvores e as pedras também são criaturas. Pois, se os apóstolos hão de pregar a todas as criaturas, hão de pregar também aos brutos? Hão de pregar também aos troncos? Hão de pregar também às pedras? Também, diz Cristo: Omni creaturae; não porque houvessem os apóstolos de pregar às pedras, e aos troncos, e aos brutos, mas porque haviam de pregar a todas as nações e línguas bárbaras e incultas do mundo, entre as quais haviam de achar homens tão irracionais como os brutos, e tão insensíveis como os troncos, e tão duros e estúpidos como as pedras. E para um apóstolo se pôr a ensinar e abrandar uma pedra, para se pôr a ensinar e moldar um tronco, para se pôr a ensinar e meter em juízo um bruto, vede se é necessário muito amor de Deus. Em um deles o veremos.


Poucos dias antes de Cristo mandar aos apóstolos a pregar pelo mundo, fez esta pergunta a S. Pedro: Simon Joannis, diligis me plus his (Jo. 21,15)? Pedro, amas-me mais que todos estes? Respondeu o santo: Etiam, Domine, tu scis quia amo te: Senhor, bem sabeis vós que vos amo. Ouvida a resposta, torna Cristo a fazer segunda vez a mesma pergunta: Simon Joannis, diligis me plus his? Pedro, amas-me mais que todos estes? Respondeu S. Pedro, com a mesma submissão e encolhimento, que bem sabia o Senhor, que o amava: Tu scis quia amo te. Ouvida a mesma resposta segunda vez, torna Cristo terceira vez a repetir a mesma pergunta, e diz o texto que se entristeceu São Pedro: Contristatus est Petrus, quia dixit ei tertio, amas me? Entristeceu-se Pedro, porque Cristo lhe perguntou a terceira vez se o amava. — E verdadeiramente que a matéria e a instância era muito para dar cuidado. Quando eu li estas palavras a primeira vez, pareceu-me que seria este exame de amor tão repetido, para Cristo mandar a S. Pedro que fosse a Jerusalém, que entrasse pelo palácio de Caifás, e que, no mesmo lugar onde o tinha negado, se desdissesse publicamente, e confessasse a vozes que seu Mestre era o verdadeiro Messias e Filho de Deus verdadeiro, e, que se por isso o quisessem matar e queimar, que se deixasse tirar a vida e fazer em cinza. Para isto cuidava eu que eram estas perguntas e estes exames tão repetidos do amor de S. Pedro. Mas depois que o santo respondeu na mesma forma a terceira vez, que amava, o que o Senhor lhe disse foi: Pasce oves meas (Jo. 21,17): Pois, Pedro, já que me amas tanto, mostra-o em apascentar as minhas ovelhas. -Agora me admiro eu deveras. Pois, para apascentar as ovelhas de Cristo tanto aparato de exames de amor de Deus? Uma vez, se me amas, e outra vez, se me amas, e terceira vez, se me amas? E não só, se me amas, senão, se me amas mais que todos? Sim. Ora vede.


As ovelhas que S. Pedro havia de apascentar, eram as nações de todo o mundo, as quais Cristo queria trazer e ajuntar de todo ele, e fazer de todas um só rebanho, que é a Igreja, debaixo de um só pastor, que é S. Pedro: Et alias oves habeo, quae non sunt ex hoc ovili, et illas opportet me adducere, et vocem meam audient, et fiet unum ovile et unus pastor (5). De maneira que o rebanho que Cristo encomendou a S. Pedro não era rebanho feito, senão que se havia de fazer, e as ovelhas não eram ovelhas mansas, senão que se haviam de amansar: eram lobos, eram ursos, eram tigres, eram leões, eram serpentes, eram dragões, eram áspides, eram basiliscos, que por meio da pregação se haviam de converter em ovelhas. Eram nações bárbaras e incultas, eram nações feras e indômitas, eram nações cruéis e carniceiras, eram nações sem humanidade, sem-razão, e muitas delas sem lei, que por meio da fé e do Batismo se haviam de fazer cristãs; e para apascentar e amansar semelhante gado, para doutrinar e cultivar semelhantes gentes, é necessário muito cabedal de amor de Deus, é necessário amar a Deus: Diligis me, e mais amar a Deus: Diligis me, e mais amar a Deus: Diligis me, e não só amar a Deus uma, duas e três vezes, senão amá-lo mais que todos: Diligis me plus his?


Quando as ovelhas que Cristo encomendava a S. Pedro foram mansas e domésticas, ainda era necessário muito amor para suportar o trabalho de as guardar. Exemplo seja Jacó, pastor de Labão e amante de Raquel, de quem diz a Escritura que sofria tão levemente o que sofria, porque amava tão grandemente como amava: Prae amoris magnitudine (Gên. 29,20). E se, para guardar ovelhas mansas, é necessário amor, e muito amor, que será para ir tirar das brenhas ovelhas feras, para as amansar e afeiçoar aos novos pastos, para as acostumar à voz do pastor e à obediência do cajado, e sobretudo para desprezar os perigos de se confiar de suas garras e dentes, enquanto são ainda feras, e não ovelhas. Se é necessário amor para ser pastor de ovelhas que comem no prado e bebem no rio, que amor será necessário para ser pastor de ovelhas, que talvez comem os pastores e lhes bebem o sangue? Por isso Cristo examina três vezes de amor a S. Pedro, por isso o Espírito Santo, Deus de amor, vem hoje a formar estes pastores e estes mestres, e por isso o Mestre divino passa hoje os seus discípulos da Escola da Sabedoria para a Escola do Amor: Ille vos docebit.


III
Aplicando agora esta doutrina universal ao particular da terra em que vivemos, digo que, se em outras terras é necessário aos apóstolos, ou aos sucessores do seu ministério, muito cabedal de amor de Deus para ensinar, nesta terra, e nestas terras é ainda necessário muito mais amor de Deus que em nenhuma outra. E por quê? Por dois princípios: o primeiro, pela qualidade das gentes; o segundo, pela dificuldade das línguas.
Primeiramente, pela qualidade da gente, porque a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo. Bastava por prova a da experiência, mas temos também — quem tal cuidara! — a do Evangelho. A forma com que Cristo mandou pelo mundo a seus discípulos, diz o evangelista S. Marcos que foi esta: Exprobavit incredulitatem eorum, et duritiam cordis, quia iis, qui viderant eum resurrexisse, non crediderunt, et dixit illis: Euntes in mundum universum praedicate Evangelium omni creaturae (Mc. 16,14 s): Repreendeu Cristo aos discípulos da incredulidade e dureza de coração, com que não tinham dado crédito aos que o viram ressuscitado, e sobre esta repreensão os mandou que fossem pregar por todo o mundo. — A S. Pedro coube-lhe Roma e Itália; a S. João, a Ásia Menor; a São Tiago, Espanha; a S. Mateus, Etiópia; a S. Simão, Mesopotâmia; a S. Judas Tadeu, o Egito; aos outros, outras províncias, e finalmente a Santo Tomé esta parte da América em que estamos, a que vulgar e indignamente chamaram Brasil. Agora pergunto eu: e por que nesta repartição coube o Brasil a Santo Tomé e não a outro apóstolo? Ouvi a razão.


Notam alguns autores modernos que notificou Cristo aos apóstolos a pregação da fé pelo mundo, depois de os repreender da culpa da incredulidade, para que os trabalhos que haviam de padecer na pregação da fé fossem também em satisfação e como em penitência da mesma incredulidade e dureza de coração que tiveram em não quererem crer: Exprobavit incredulitatem eorum, et duritiam cordis, et dixit illis: Euntes in mundum universum. E como Santo Tomé, entre todos os apóstolos, foi o mais culpado da incredulidade, por isso a Santo Tomé lhe coube, na repartição do mundo, a missão do Brasil, porque, onde fora maior a culpa, era justo que fosse mais pesada a penitência. Como se dissera o Senhor: os outros apóstolos, que foram menos culpados na incredulidade, vão pregar aos gregos, vão pregar aos romanos, vão pregar aos etíopes, aos árabes, aos armênios, aos sarmatas, aos citas; mas Tomé, que teve a maior culpa, vá pregar aos gentios do Brasil, e pague a dureza de sua incredulidade com ensinar à gente mais bárbara e mais dura. Bem o mostrou o efeito. Quando os portugueses descobriram o Brasil, acharam as pegadas de Santo Tomé estampadas em uma pedra, que hoje se vê nas praias da Bahia; mas rasto, nem memória da fé que pregou Santo Tomé, nenhum acharam nos homens. Não se podia melhor provar e encarecer a barbaria da gente. Nas pedras, acharam-se rastos do pregador, na gente não se achou rasto da pregação; as pedras conservaram memórias do apóstolo, os corações não conservaram memória da doutrina.


A causa por que as não conservaram, diremos logo, mas é necessário satisfazer primeiro a uma grande dúvida, que contra o que imos dizendo se oferece. Não há gentios no mundo que menos repugnem à doutrina da fé, e mais facilmente a aceitem e recebam, que os brasis; como dizemos logo, que foi pena da incredulidade de Santo Tomé o vir pregar a esta gente? Assim foi — e quando menos, assim pode ser — e não porque os brasis não creiam com muita facilidade, mas porque essa mesma facilidade com que crêem faz que o seu crer, em certo modo, seja como o não crer. Outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos. Em outros gentios a incredulidade é incredulidade, e a fé é fé; nos brasis a mesma fé ou é, ou parece incredulidade. São os brasis como o pai daquele lunático do Evangelho, que padecia na fé os mesmos acidentes que o filho no juízo. Disse-lhe Cristo: Omnia possibilia sunt credenti (Mc. 9,22): Que tudo é possível a quem crê. — E eles respondeu: Credo, Domine, adjuva incredulitatem meam: Creio, Senhor, ajudai minha incredulidade. — Reparam muito os santos nos termos desta proposição, e verdadeiramente é muito para reparar. Quem diz: creio, crê e tem fé; quem diz: ajudai minha incredulidade, não crê e não tem fé. Pois como era isto? Cria este homem, e não cria; tinha fé, e não tinha fé juntamente? Sim, diz o Venerável Beda: Uno eodemque tempore his, qui nondum perfecte crediderat, simul et credebat, et incredulus erat: No mesmo tempo cria e não cria este homem, porque era tão imperfeita a fé com que cria, que por uma parte parecia e era fé, e por outra parecia e era incredulidade: Uno eodemque tempore, et credebat, et incredulus erat. Tal é a fé dos brasis: é fé que parece incredulidade, e é incredulidade que parece fé; é fé, porque crêem sem dúvida e confessam sem repugnância tudo o que lhes ensinam, e parece incredulidade, porque, com a mesma facilidade com que aprenderam, desaprendem, e com a mesma facilidade, com que creram, descrêem.


Assim lhe aconteceu a Santo Tomé com ele. Por que vos parece que passou Santo Tomé tão brevemente pelo Brasil, sendo uma região tão dilatada e umas terras tão vastas? É que receberam os naturais a fé que o santo lhes pregou com tanta facilidade e tão sem resistência nem impedimento, que não foi necessário gastar mais tempo com ele. Mas tanto que o santo apóstolo pôs os pés no mar — que este, dizem, foi o caminho por onde passou à Índia — tanto que o santo apóstolo — digamo-lo assim — virou as costas, no mesmo ponto se esqueceram os brasis de tudo quanto lhes tinha ensinado, e começaram a descrer ou a não fazer caso de quanto tinham crido, que é gênero de incredulidade mais irracional, que se nunca creram. Pelo contrário, na Índia pregou Santo Tomé àquelas gentilidades, como fizera às do Brasil: chegaram também lá os portugueses dali a mil e quinhentos anos, e que acharam? Não só acharam a sepultura e as relíquias do santo apóstolo, e os instrumentos de seu martírio, mas o seu nome vivo na memória dos naturais, e o que é mais, a fé de Cristo, que lhes pregara, chamando-se cristãos de Santo Tomé todos os que se estendem pela grande costa de Coromandel, onde o santo está sepultado.
E qual seria a razão por que nas gentilidades da Índia se conservou a fé de Santo Tomé, e nas do Brasil não? Se as do Brasil ficaram desassistidas do santo apóstolo pela sua ausência, as da Índia também ficaram desassistidas dele pela sua morte. Pois, se naquelas nações se conservou a fé por tantos centos de anos, nestas por que se não conservou? Porque esta é a diferença que há de umas nações a outras. Nas da Índia, muitas são capazes de conservarem a fé sem assistência dos pregadores; mas nas do Brasil nenhuma há que tenha esta capacidade. Esta é uma das maiores dificuldades que tem aqui a conversão. Há-se de estar sempre ensinando o que já está aprendido, e há-se de estar sempre plantando o que já está nascido, sob pena de se perder o trabalho e mais o fruto. A estrela que apareceu no Oriente aos Magos guiou-os até o presépio, e não apareceu mais. Por quê? Porque muitos gentios do Oriente, e doutras partes do mundo, são capazes de que os pregadores, depois de lhes mostrarem a Cristo, se apartem dele e os deixem.

Assim o fez S. Filipe ao eunuco da rainha Candace, de Etiópia: explicou-lhe a Escritura de Isaías, deu-lhe notícia da fé e divindade de Cristo, batizou-o no rio de Gaza, por onde passavam, e tanto que esteve batizado, diz o texto que arrebatou um anjo a S. Filipe, e que o não viu mais o eunuco: Cum autem ascendissent de aqua, Spiritus Domini rapuit Philippum, et amplius non vidit eum eunuchus (At. 8, 39). Desapareceu a estrela, e permaneceu a fé nos Magos; desapareceu S. Filipe, e permaneceu a fé no eunuco; mas esta capacidade, que se acha nos gentios do Oriente, e ainda nos de Etiópia, não se acha nos do Brasil. A estrela que os alumiar não há de desaparecer, sob pena de se apagar a luz da doutrina; o apóstolo que os batizar, não se há de ausentar, sob pena de se perder o fruto do Batismo. É necessário, nesta vinha, que esteja sempre a cana da doutrina arrimada ao pé da cepa, e atada à vide, para que se logre o fruto e o trabalho.


Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que de cinco dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário — e estas são as do Brasil —, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não vêem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos.


Eis aqui a razão por que digo que é mais dificultosa de cultivar esta gentilidade, que nenhuma outra do mundo: se os não assistis, perde-se o trabalho, como o perdeu Santo Tomé; e para se aproveitar e lograr o trabalho, há de ser com outro trabalho maior, que é assisti-los; há-se de assistir e insistir sempre com ele, tornando a trabalhar o já trabalhado e a plantar o já plantado, e a ensinar o já ensinado, não levantando jamais a mão da obra, porque sempre está por obrar, ainda depois de obrada. Hão-se de haver os pregadores evangélicos na formação desta parte do mundo, como Deus se houve ou se há na criação e conservação de todo. Criou Deus todas as criaturas no princípio do mundo em seis dias, e, depois de as criar, que fez e que faz até hoje? Cristo o disse: Pater meus usque modo operatur et ego operor (6): Desde o princípio do mundo até hoje não levantou Deus mão da obra, nem por um só instante; e com a mesma ação com que criou o mundo, o esteve sempre, e está, e estará conservando até o fim deles. E se Deus o não fizer assim, se desistir, se abrir mão da obra por um só momento, no mesmo momento perecerá o mundo, e se perderá tudo o que em tantos anos se tem obrado. Tal é no espiritual a condição desta nova parte do mundo, e tal o empenho dos que têm à sua conta a conversão e reformação dela. Para criar, basta que trabalhem poucos dias; mas para conservar, é necessário que assistam, e continuem, e trabalhem, não só muitos dias e muitos anos, mas sempre. E já pode ser que esse fosse o mistério com que Cristo disse aos apóstolos: Praedicate omni creaturae (MC. 16,15). Não disse: Ide pregar aos que remi, senão: Ide pregar aos que criei, porque o remir foi obra de um dia, o criar é obra de todos os dias. Cristo remiu uma só vez, e não está sempre remindo; Deus criou uma vez, e está sempre criando. Assim se há de fazer nestas nações: há-se-lhes de aplicar o preço da Redenção, mas não pelo modo com que foram remidas, senão pelo modo com que foram criadas. Assim como Deus está sempre criando o criado, assim os mestres e pregadores hão de estar sempre ensinando o ensinado, e convertendo o convertido, e fazendo o feito: o feito para que se não desfaça; o convertido, para que se não perverta; o ensinado, para que se não esqueça; e, finalmente, ajudando a incredulidade não incrédula, para que a fé seja fé não infiel: Credo, Domine: adjuva incredulita tem meam (7).

E sendo tão forçosamente necessária a assistência com estas gentes, e no seu clima, e no seu trato, e na sua miséria, e em tantos outros perigos e desamparos da vida, da saúde, do alívio, e de tudo o que pede ou sente o natural humano, vede se é necessário muito cabedal de amor divino para esta empresa, e se com razão entrega Cristo o magistério dela a um Deus, que, por afeto, e por efeitos, todo é amor: Ille vos docebit omnia (8).


IV
A segunda circunstância que pede grande cabedal de amor de Deus é a dificuldade das línguas. Se o Espírito Santo descera hoje em línguas milagrosas, como antigamente, não tinha tanta dificuldade o pregar aos gentios; mas haverem-se de aprender essas línguas com estudo e com trabalho é uma empresa muito dificultosa, e que só um grande amor de Deus a pode vencer. Apareceu Deus em uma visão ao profeta Ezequiel, e, dando-lhe um livro, disse-lhe que o comesse, e que fosse pregar aos filhos de Israel tudo o que nele estava escrito: Comede volumen istud, et vadens loquere ad filios Israel (Ez. 3,1). Abriu a boca o profeta, não se atrevendo a tocar no livro por reverência, comeu-o, e diz que lhe soube bem, e que o achou muito doce: Comedi illud, et factum est in ore meo sicut mel dulce (Ez 3,3). Se os homens pudessem comer os livros de um bocado, que facilmente se aprenderiam as ciências, e se tomaram as línguas? Oh! que fácil modo de aprender! Oh! que doce modo de estudar! Tal foi o modo com que Deus, em um momento, antigamente ensinava os profetas, e com que hoje o Espírito Santo, em outro momento, ensinou os apóstolos, achando-se de repente doutos nas ciências, eruditos nas Escrituras, prontos nas línguas, que tudo isto se lhes infundiu naquele repente em que desceu sobre eles o Espírito Santo: Factus est repente de caelo sonus, tanquam advenientis Spiritus (9).


Mas haver de comer os livros folha a folha, haver de levar as ciências bocado a bocado, e às vezes com muito fastio, haver de mastigar as línguas nome por nome, verbo por verbo, sílaba por sílaba, e ainda letra por letra, por certo que é coisa muito dura e muito desabrida, e muito para amargar, e que só o muito amor de Deus a pode fazer doce. Assim o aludiu Deus ao mesmo profeta Ezequiel neste mesmo lugar, com termos bem particulares e bem notáveis.
Vade ad domum Israel, et loqueris verba mea ad eos, non enim ad populum profundi sermonis et ignotae linguae tu mitteris, neque ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones (Ez. 3,4 ss): Ide, Ezequiel, pregai o que vos tenho dito aos filhos de Israel, e, para que não repugneis a missão, nem vos pareça que vos mando a uma empresa muito dificultosa, adverti aonde ides e aonde não ides. Adverti que ides pregar a um povo da vossa própria nação e de vossa própria língua, que o entendeis e vos entende: Ad domum Israel; e adverti que não ides pregar a gente de diferente nação e diferente língua, nem menos a gentes de muitas e diferentes nações, e muitas e diferentes línguas, o que nem vós as entendais, nem elas vos entendam: Non enim ad populum profundis sermonis et ignotae linguae tu mitteris, neque ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones. De sorte — se bem advertis — que distingue Deus no ofício de pregar três gêneros de empresas: uma fácil, outra dificultosa, outra dificultosíssima. A fácil é pregar à gente da própria nação e da própria língua: Vade ad filios Israel; a dificultosa é pregar a uma gente de diferente língua e diferente nação: Ad populum projundi sermonis et ignotae linguae; a dificultosíssima é pregar a gentes não de uma só nação e uma só língua diferente, senão de muitas e diferentes nações, e muitas e diferentes línguas, desconhecidas, escuras, bárbaras, e que se não podem entender: Ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones.


À primeira destas três empresas mandou Deus ao profeta Ezequiel, e a todos os outros profetas antigos, os quais todos — exceto quando muito Jonas e Jeremias — pregaram a gente da sua nação e da sua língua. A segunda e a terceira empresa ficou guardada para os apóstolos e pregadores da lei da graça, e entre eles particularmente para os portugueses, e entre os portugueses, mais em particular ainda, para os desta conquista, em que são tantas, tão estranhas, tão bárbaras e tão nunca ouvidas, nem conhecidas, nem imaginadas as línguas. Manda Portugal missionários ao Japão, onde há cinqüenta e três reinos, ou sessenta, como outros escrevem; mas a língua, ainda que desconhecida, é uma só: Ad populum profundi sermonis et ignotae linguae. Manda Portugal missionários à China, império vastíssimo, dividido em quinze províncias, capaz cada uma de muitos reinos; mas a língua, ainda que desconhecida, é também uma: Ad populum profundi sermonis et ignotae linguae. Manda Portugal missionários ao Mogor, à Pérsia, ao Preste João, impérios grandes, poderosos, dilatados, e dos maiores do mundo; mas cada um de uma só língua: Ad populum profundi sermonis et ignotae linguae. Porém os missionários que Portugal manda ao Maranhão, posto que não tenha nome de império nem de reino, são verdadeiramente aqueles que Deus reservou para a terceira, última e dificultosísssima empresa, porque vem pregar a gentes de tantas, tão diversas e tão incógnitas línguas, que só uma coisa se sabe delas, que é não terem número: Ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones.


Pela muita variedade das línguas, houve quem chamou ao Rio das Almazonas rio Babel; mas vem-lhe tão curto o nome de Babel, como o de rio. Vem-lhe curto o nome de rio, porque verdadeiramente é um mar doce, maior que o Mar Mediterrâneo no comprimento e na boca. O Mar Mediterrâneo no mais largo da boca tem sete léguas, e o Rio das Almazonas oitenta; o Mar Mediterrâneo, do Estreito de Gilbraltar até as praias da Síria, que é a maior longitude, tem mil léguas de comprido, e o Rio das Almazonas, da cidade de Belém para cima, já se lhe tem contado mais de três mil, e ainda se lhe não sabe princípio. Por isso os naturais lhe chamam Pará, e os portugueses Maranhão, que tudo quer dizer mar, e mar grande. E vem-lhe curto também o nome de Babel, porque na Torre de Babel, como diz S. Jerônimo, houve somente setenta e duas línguas, e as que se falam no Rio das Almazonas são tantas e tão diversas, que se lhes não sabe o nome nem o número. As conhecidas até o ano de 639, no descobrimento do Rio de Quito, eram cento e cinqüenta. Depois se descobriram muitas mais, e a menor parte do rio, de seus imensos braços, e das nações que os habitam, é o que está descoberto. Tantos são os povos, tantas e tão ocultas as línguas, e de tão nova e nunca ouvida inteligência: Ad populos multos profundi sermonis et ignotae linguae, quorum non possis audire sermones.

Nesta última cláusula do profeta: Quorum non possis audire sermones, a palavra ouvir significa entender, porque o que se não entende é como se não se ouvira. Mas em muitas das nações desta conquista se verifica a mesma palavra no sentido natural, assim como soa, porque há línguas entre elas de tão escura e cerrada pronunciação, que verdadeiramente se pode afirmar que se não ouvem: Quorum non possis audire sermones. Por vezes me aconteceu estar com o ouvido aplicado à boca do bárbaro, e ainda do intérprete, sem poder distinguir as sílabas, nem perceber as vogais ou consoantes de que se formavam, equivocando-se a mesma letra com duas e três semelhantes, ou compondo-se — o que é mais certo — com mistura de todas elas: umas tão delgadas e sutis, outras tão duras e escabrosas, outras tão interiores e escuras, e mais afogadas na garganta que pronunciadas na língua; outras tão curtas e subidas, outras tão estendidas e multiplicadas, que não percebem os ouvidos mais que a confusão, sendo certo, em todo rigor, que as tais línguas não se ouvem, pois se não ouve delas mais que o sonido, e não palavras desarticuladas e humanas, como diz o profeta: Quorum non possis audire sermones.

De José, ou do povo de Israel no Egito, diz Davi por grande encarecimento de trabalho: Linguam, quam non noverat, audivit: que ouvia a língua que não entendia. — Se é trabalho ouvir a língua que não entendeis, quanto maior trabalho será haver de entender a língua que não ouvis? O primeiro trabalho é ouvi-la; o segundo, percebê-la; o terceiro, reduzi-la a gramática e a preceitos; o quarto, estudá-la: o quinto — e não o menor, e que obrigou a S. Jerônimo a limar os dentes — o pronunciá-la. E depois de todos estes trabalhos, ainda não começastes a trabalhar, porque são disposições somente para o trabalho. Santo Agostinho intentou aprender a língua grega, e, chegando à segunda declinação, em que se declina ophis, que quer dizer serpente, não foi mais por diante, e disse com galantaria: Ophis me terruit: a serpente me meteu tal medo, que me fez tornar atrás. -Pois se a Santo Agostinho, sendo Santo Agostinho, se à águia dos entendimentos humanos se lhe fez tão dificultoso aprender a língua grega, que está tão vulgarizada entre os latinos, e tão facilitada com mestres, com livros, com artes, com vocabulários, e com todos os outros instrumentos de aprender, que serão as línguas bárbaras e barbaríssimas de umas gentes, onde nunca houve quem soubesse ler nem escrever? Que será aprender o nheengaiba, o juruuna, o tapajó, o teremembé, o mamaiana, que só os nomes parece que fazem horror?

As letras dos chinas e dos japões muita dificuldade têm, porque são letras hieroglíficas, como as dos egípcios; mas, enfim, é aprender língua de gente política, e estudar por letra e por papel. Mas, haver de arrostar com uma língua bruta, e de brutos, sem livro, sem mestre, sem guia, e no meio daquela escuridade e dissonância haver de cavar os primeiros alicerces, e descobrir os primeiros rudimentos dela, distinguir o nome, o verbo, o advérbio, a proposição, o número, o caso, o tempo, o modo, e modos nunca vistos nem imaginados, como de homens enfim tão diferentes dos outros nas línguas, como nos costumes, não há dúvida que é empresa muito árdua a qualquer entendimento, e muito mais árdua à vontade que não estiver muito sacrificada e muito unida com Deus. Receber as línguas do céu milagrosamente, em um momento, como as receberam os apóstolos, foi maior felicidade; mas aprendê-las e adquiri-las dicção por dicção, e vocábulo por vocábulo, à força de estudo, de diligência e de continuação, assim como será maior merecimento, é também muito diferente trabalho, e para um e outro se requer muita graça do Espírito Santo e grande cabedal de amor de Deus. Maior rigor usa neste caso o amor de Deus com os pregadores do Evangelho, do que usou a justiça de Deus com os edificadores da Torre de Babel. Aos que edificavam a Torre de Babel condenou-os a justiça de Deus a falar diversas línguas, mas não a aprendê-las; aos que pregam a fé entre as gentilidades, condena-os o amor de Deus, não só a que falem as suas línguas, senão a que as aprendam, que, se não fora por amor, era muito maior castigo. E que amor será necessário para um homem, e tantos homens, se condenarem voluntariamente, não só cada um a uma língua — como os da Torre -mas muitos a muitas?

Vejo, porém, que me perguntais: Pois, se a Deus é tão fácil infundir a ciência das línguas em um momento, e se antigamente deu aos apóstolos o dom das línguas, para que pregassem a fé pelo mundo, agora, por que não dá o mesmo dom aos pregadores da mesma fé, principalmente em cristandades ou gentilidades novas, como estas nossas? Esta dúvida é mui antiga, e já lhe respondeu S. Gregório Papa e Santo Agostinho, posto que variamente. A razão literal é porque Deus regularmente não faz milagres sem necessidade: quando faltam as forças humanas, então suprem as divinas. E como Cristo queria converter o mundo só com doze homens, para converter um mundo tão grande, tantas cidades, tantos reinos, tantas províncias, com tão poucos pregadores, era necessário que milagrosamente se lhes infundissem as línguas de todas as nações, porque não tinham tempo nem lugar para as aprender; porém, depois que a fé esteve tão estendida e propagada, como está hoje, e houve muitos ministros que a pudessem pregar, aprendendo as línguas de cada nação, cessaram comumente as línguas milagrosas, porque não foi necessária a continuação do milagre. Vede-o nas línguas do Espírito Santo.

Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum (At. 2,3): Apareceram sobre os apóstolos muitas línguas de fogo, o qual se assentou sobre eles. Não sei se reparais na diferença: diz que apareceram as línguas, e que o fogo se assentou. E por que se não assentaram as línguas, senão o fogo? Porque as línguas não vieram de assento, o fogo sim. Os dons que o Espírito Santo trouxe hoje consigo sobre os apóstolos foram principalmente dois: o dom das línguas e o dom do amor de Deus. O dom das línguas não se assentou, porque não havia de perseverar: acabou geralmente com os apóstolos: Apparuerunt dispertitae linguae. Apareceram as línguas e desapareceram. Porém o dom do fogo, o dom do amor de Deus, esse se assentou: Sedit supra singulos eorum, porque veio de assento, e perseverou não só nos apóstolos, senão em todos os seus sucessores. E assim vimos em todas as idades, e vemos também hoje tantos varões apostólicos, em que está tão vivo este fogo, tão fervoroso este espírito, e tão manifesto e tão ardente este amor. Aos apóstolos deu-lhes Deus línguas de fogo, aos seus sucessores deu-lhes fogo de línguas. As línguas de fogo acabaram, mas o fogo de línguas não acabou, porque este fogo, esse Espírito, esse amor de Deus faz aprender, estudar e saber essas línguas. E quanto a esta ciência das línguas, muito mais à letra se cumpre nos varões apostólicos de hoje a promessa de Cristo, que nos mesmos apóstolos antigos, porque Cristo disse: Ille vos docebit: que o Espírito Santo os ensinaria. E aos apóstolos da Igreja primitiva não lhes ensinou o Espírito Santo as línguas: deu-lhas e infundiu-lhas; aos apóstolos de hoje não lhes dá o Espírito Santo as línguas: vem-lhas infundir e ensinar-lhas: Ille vos docebit. As primeiras línguas foram dadas com milagre, as segundas são ensinadas sem milagre; mas eu tenho estas por mais milagrosas, porque menos maravilha é em Deus podê-las dar sem trabalho, que no homem querê-las aprender com tanto trabalho: em Deus argúi um poder infinito, que em Deus é natureza; no homem argúi um amor de Deus excessivo, que é sobre a natureza do homem. Com razão comete logo Cristo este ofício de ensinar ao Espírito Santo, e passa os seus discípulos da Escola da Sabedoria para a Escola do Amor: Ille vos docebit.


V
Está dito e está provado. Mas que se tira ou colhe daqui? Parecerá porventura aos ouvintes que esta doutrina é só para os pregadores da fé, para os religiosos, para os missionários, para os pastores e ministros da Igreja? Assim será noutras terras: nestas nossas é para todos. Nas outras terras uns são ministros do Evangelho, e outros não; nas conquistas de Portugal todos são ministros do Evangelho. Assim o disse Santo Agostinho pregando na África, que também é uma das nossas conquistas. Explicava o santo aquela sentença de Cristo: Ubi sum ego, illic et minister meus erit (Jo. 12,26), em que o Senhor promete que, onde ele está, estarão também seus ministros. E convertendo-se o grande doutor para o povo, disse desta maneira: Cum auditis, fratres, Dominum dicentem illic et minister meus erit, nolite tantummodo bonos episcopos et clericos cogitare; etiam vos pro modulo vestro ministrate Christo: Quando ouvis os prêmios que Cristo promete a seus ministros, não cuideis que só os bispos e os clérigos são ministros seus: também vós, por vosso modo, não só podeis, mas deveis ser ministros de Cristo. E por que modo será ministro de Cristo um homem leigo, sem letras, sem ordens e sem grau algum na Igreja? O mesmo santo o vai dizendo: Bene vivendo: vivendo bem, e dando bom exemplo; Eleemosynas faciendo: fazendo esmolas, e exercitando as outras obras de caridade; Nomem doctrinamque ejus, quibus potuerit, praedicando: e pregando o nome de Cristo, e ensinando a sua fé e doutrina a todos aqueles a quem puder; Unusquisque paterfamilias pro Christo et pro vita aeterna suos omnes admoneat, doceat, hortetur, corripiat, impendat benevolentiam, exerceat disciplinam: Cada um dos pais de famílias em sua casa, por amor de Cristo e por amor da vida eterna, ensine a todos os seus o que devem saber, encaminhe-os, exorte-os, repreenda-os, castigue-os, tire-os das más ocasiões, e já com amor, já com rigor, zele, procure e faça diligência por que vivam conforme a lei de Cristo.

Este tal pai de famílias, que será? Ouvi, cristãos, para consolação vossa o que conclui Agostinho: Ita in domo sua ecclesiasticum et quodammodo episcopale implebit officium, ministrans Christo, ut in aeternum sit cum ipso: Por este modo um pai de famílias, um homem leigo fará em sua casa não só ofício eclesiástico, mas ofício episcopal, e não só será qualquer ministro de Cristo, senão o maior de todos os ministros, quais são os bispos, servindo e ministrando nesta vida a Cristo, para reinar eternamente com eles: Ministrans Christo, ut in aeternum sit cum ipso. Isto dizia Santo Agostinho aos seus povos da África, e o pudera dizer com muito maior razão aos nossos da América.

Oh! se o divino Espírito, que hoje desceu sobre os apóstolos, descera eficazmente com um raio de sua divina luz sobre todos os moradores deste Estado, para que dentro e fora de suas casas acudiram às obrigações que devem à fé que professam, como é certo que ficariam todos neste dia não só verdadeiros ministros mas apóstolos de Cristo? Que coisa é ser apóstolo? Ser apóstolo nenhuma outra coisa é senão ensinar a fé e trazer almas a Cristo; e nesta conquista ninguém há que o não possa, e, ainda, que o não deva fazer. Primeiramente nesta missão do Rio das Almazonas, que amanhã parte — e que Deus seja servido levar e trazer tão carregada de despojos do céu, como esperamos, e com tanto remédio para a terra, como se deseja — que português vai de escolta, que não vá fazendo ofício de apóstolo? Não só são apóstolos os missionários, senão também os soldados e capitães, porque todos vão buscar gentio e trazê-los ao lume da fé e ao grêmio da Igreja. A Igreja formou-se do lado de Cristo, seu esposo, como Eva se formou do lado de Adão. E formou-se quando do lado de Cristo na cruz saiu sangue e água: Exivit sanguis et aqua (Jo. 19, 34).O sangue significava o preço da Redenção, e a água, a água do Batismo. E saiu o sangue junto com a água, porque a virtude que tem a água é recebida do sangue. Mas, pergunto agora, este lado de Cristo, donde se saiu e se formou a Igreja, quem o abriu? Abriu-o um soldado com uma lança, diz o texto: Unus militum lancea latus ejus aperuit (ibid). Pois também os soldados concorrem para a formação da Igreja?

Sim, porque muitas vezes é necessário que os soldados com suas armas abram e franqueiem a porta, para que por essa porta aberta e franqueada se comunique o sangue da Redenção e a água do Batismo: Et continuo exivit sanguis et aqua. E quando a fé se prega debaixo das armas e à sombra delas, tão apóstolos são os que pregam como os que defendem, porque uns e outros cooperam à salvação das almas.


E se eu agora dissesse que nesta conquista, assim como os homens fazem ofício de apóstolos na campanha, assim o podem fazer as mulheres em suas casas? Diria o que já disseram grandes autores: eles na campanha trazendo almas para a Igreja, fazem ofício de apóstolos; e elas em suas casas, doutrinando seus escravos e escravas, fazem ofícios de apóstolas. Não é o nome nem a gramática minha; é do doutíssimo Salmeirão, o qual chamou às Marias: Apostolorum apostolas: Apóstolas dos apóstolos. E por quê? Porque lhes anunciaram o mistério da Ressurreição de Cristo. Pois, se aquelas mulheres, que anunciaram a homens, já cristãos e discípulos de Cristo, um só mistério, merecem nome de apóstolas, aquelas que anunciam e ensinam a seus escravos gentios e rudes todos os mistérios da salvação, quanto mais merecem este nome? Põe-se uma de vós a ensinar por amor de Deus ao seu tapuia e à sua tapuia o Creio-em-Deus-Padre, e que lhe ensina? Ensina-lhe o mistério altíssimo da Santíssima Trindade, o mistério da Encarnação, o da Morte, o da Ressurreição, o da Ascensão de Cristo, o da vinda do Espírito Santo, o do Juízo, o da Vida Eterna, e todos os que cremos e professamos os cristãos. Vede se merece nome de apóstola uma mestra destas?


Não há dúvida que homens e mulheres todos são capazes deste altíssimo nome e deste divino ou diviníssimo exercício. Faz duas parábolas Cristo no Evangelho, uma de um pastor que perdeu uma ovelha, e a foi buscar e trazer dos matos aos ombros, outra de uma mulher que perdeu uma dracma, ou moeda de prata, e acendeu uma candeia para a buscar, e a buscou e achou em sua casa. Esta ovelha e esta moeda perdidas e achadas, são as almas desencaminhadas e erradas que se convertem e encaminham a Deus; quem buscou e achou a ovelha na primeira parábola, e quem buscou e achou a moeda na segunda, são os ministros evangélicos, que trazem e reduzem a Deus estas almas. Pois, se em uma e outra parábola significam estas duas pessoas os ministros evangélicos que trazem almas a Deus, por que na primeira introduziu Cristo um homem, que é o pastor, e na segunda uma mulher, que é a que acendeu a candeia? Para nos ensinar Cristo que assim homens como mulheres todos podem salvar almas: os homens no campo com o cajado, e as mulheres em casa com a candeia; os homens no campo, entrando pelos matos com as armas, e as mulheres em casa, alumiando e ensinando a doutrina.


Vede como estava isto profetizado pelo profeta Joel, no mesmo capítulo segundo, que foi o que hoje declarou S. Pedro ao povo de Jerusalém; Sed et super servos meos, et ancillas in diebus illis effundam spiritum meum, et prophetabunt (Jl. 2,29); Naqueles dias — diz Deus — derramarei o meu Espírito sobre os meus servos e sobre as minhas servas, e todos pregarão. — Notai; não diz Deus que derramará o seu Espírito só sobre os servos, senão sobre os servos e sobre as servas: Super servos meos, et super ancillas: porque não só os homens, senão os homens e também as mulheres podem e devem, e hão de pregar, e dilatar a fé, cada um conforme seu estado: Et prophetabunt. Por isso hoje, com grande mistério, no Cenáculo de Jerusalém, onde desceu o Espírito Santo, não só se acharam homens, senão mulheres: Hiomnes erant perseverantes unanimiter in oratione cum mulieribus(10). Estavam homens e estavam mulheres no Cenáculo, porque a homens e a mulheres vinha o Espírito Santo fazer mestres e mestras da doutrina do céu, e ensiná-los para que a ensinassem: Ille vos docebit.


VI
Suposto pois que não só aos eclesiásticos, senão também aos seculares, não só aos homens, senão também às mulheres pertence, ou de caridade ou de justiça, ou de ambas estas obrigações, ensinar a fé e a lei de Cristo aos gentios e novos cristãos naturais destas terras em que vivemos, cada um conforme seu estado, não haja, de hoje em diante, com a graça do Espírito Santo, quem se não faça discípulo deste divino e soberano Mestre, para o poder ser ao menos dos seus escravos. Os que sabeis a língua, tereis maior facilidade; os que a não sabeis, tereis maior merecimento. E uns e outros, ou por nós mesmos — que sempre será o melhor — ou por outrem, vos deveis aplicar a este tão cristão e tão devido exercício, com tal diligência e cuidado, que nenhum falte com o pasto necessário da doutrina às poucas ou muitas ovelhinhas de Cristo que o Senhor lhes tiver encomendadas, pois todos nesta conquista sois pastores ou guardadores deste grande pastor. Muitos o fazem assim com grande zelo, cristandade e edificação; mas é bem que o façam todos.


E ninguém se escuse — como escusam alguns — com a rudeza da gente, e com dizer, como acima dizíamos, que são pedras, que são troncos, que são brutos animais, porque, ainda que verdadeiramente alguns o sejam ou o pareçam, a indústria e a graça tudo vence, e de brutos, e de troncos, e de pedras os fará homens. Dizei-me, qual é mais poderosa, a graça ou a natureza? A graça, ou a arte? Pois o que faz a arte e a natureza, por que havemos de desconfiar que o faça a graça de Deus, acompanhada da vossa indústria? Concedo-vos que esse índio bárbaro e rude seja uma pedra: vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe, e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama, e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar. O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à graça divina. É uma pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois, trabalhai e continuai com ele — que nada se faz sem trabalho e perseverança — aplicai o cinzel um dia e outro dia, dai uma martelada e outra martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis não só um homem, senão um cristão, e pode ser que um santo.


Não é menos que promessa e profecia do maior de todos os profetas; Potens est Deus de lapidibus istis suscitare filios Abrahae (Lc. 3,8): Poderoso é Deus a fazer destas pedras filhos de Abraão. — Abraão é o pai de todos os que têm fé; e dizer o Batista que Deus faria de pedras filhos de Abraão foi certificar e profetizar que de gentios idólatras, bárbaros e duros como pedras, por meio da doutrina do Evangelho havia Deus de fazer não só homens, senão fiéis, e cristãos, e santos. Santo Ambrósio: Quid aliud quam lapides habebantur; qui lapidibus serviebant, similes utique his qui fecerant eos? Prophetatur igitur saxo, sit gentilium fides infundenda pectoribus, et futuros per fidem Abrahae filios oraculo pollicetur Assim o profetizou o Batista, e assim como ele foi o profeta deste milagre, vós sereis o instrumento dele. Ensinai e doutrina estas pedras, e fareis de pedras não estátuas de homens, senão verdadeiros homens e verdadeiros filhos de Abraão por meio da fé verdadeira. O que se faz nas pedras, mais facilmente se pode fazer nos troncos, onde é menor a resistência e a bruteza.


Só para fazer de animais homens não tem poder nem habilidade a arte; mas a natureza sim, e é maravilha que por ordinário o não parece. Vede-a. Fostes à caça por esses bosques e campinas, matastes o veado, a anta, o porco montês; matou o vosso escravo o camaleão, o lagarto, o crocodilo; como ele com os seus praceiros, comestes vós com os vossos amigos. E que se seguiu? Dali a oito horas, ou menos — se com menos se contentar Galeno — a anta, o veado, o porco montês, o camaleão, o lagarto, o crocodilo, todos estão convertidos em homens: já é carne de homem o que pouco antes era carne de feras. Pois se isto pode fazer a natureza por força do calor natural, por que o não fará a graça muito mais eficazmente por força do calor e fogo do Espírito Santo? Se a natureza, naturalmente, pode converter animais feros em homens, a graça, sobrenaturalmente, por que não fará esta conversão? O mesmo Espírito autor da graça o mostrou assim, e o ensinou a S. Pedro. Estava S. Pedro em oração na cidade de Jope; eis que vê abrir-se o céu, e descer um como grande lençol — assim lhe chama o texto — suspendido por quatro pontas, e no fundo dele uma multidão confusa de feras, de serpentes, de aves de rapina e de todos os outros animais silvestres, bravos, asquerosos e peçonhentos, que na lei velha se chamavam imundos. Três vezes na mesma hora viu S. Pedro esta representação, cada vez mais suspenso e duvidoso do que poderia significar, e três vezes ouviu juntamente uma voz que lhe dizia: Surge Petre, occide et manduca (At. 10,13): Eia, Pedro, matai e comei. — As palavras não declaravam o enigma, antes o escureciam mais, porque lhe parecia a S. Pedro impossível que Deus, que tinha vedado aqueles animais, lhos mandasse comer. Batem à porta neste mesmo ponto, e era um recado ou embaixada de um senhor gentio, chamado Cornélio, capitão dos presídios romanos de Cesaréia, o qual se mandava oferecer a S. Pedro, para que o instruísse na fé, e o batizasse. Este gentio, como diz Santo Ambrósio, foi o primeiro que pediu e recebeu a fé de Cristo, e por este efeito, e pela declaração de um anjo, entendeu então S. Pedro o que significava a visão. Entendeu que aquele lençol tão grande era o mundo; que as quatro pontas por onde se suspendia eram as quatro partes dele; que os animais feros, imundos e reprovados na lei, eram as diversas nações de gentios, bárbaras e indômitas, que até então estavam fora do conhecimento e obediência de Deus, e que o mesmo Senhor queria que viessem a ela. Até aqui o texto e a inteligência dele.


Mas se aqueles animais significavam as nações dos gentios, e estas nações queria Deus que S. Pedro as ensinasse e convertesse, como lhe manda que as mate e que as coma? Por isso mesmo: porque o modo de converter feras em homens, é matando-as e comendo-as, e não há coisa mais parecida ao ensinar e doutrinar que o matar e o comer. Para uma fera se converter em homem há de deixar de ser o que era e começar a ser o que não era, e tudo isto se faz matando-a e comendo-a: matando-a, deixa de ser o que era, porque, morta, já não é fera; comendo-a, começa a ser o que não era, porque, comida, já é homem. E porque Deus queria que S. Pedro convertesse em homens, e homens fiéis, todas aquelas feras que lhe mostrava, por isso a voz do céu lhe dizia que as matasse e as comesse; Occide et manduca — querendo-lhe dizer que as ensinasse e doutrinasse, porque o ensinar e doutrinar havia de fazer nelas os mesmos efeitos que o matar e o comer. Ouvi a S. Gregório Papa: Primo pastori dicitur macta et manduca quod mactatur quippe a vita occiditur; id vero quod comeditur in comedentis corpore commutatur: macta ergo, et manduca, dicitur id est, a peccato eos qui vivunt interfice, et a se ipsis illos in tua membra convertere.

Querendo Deus que S. Pedro ensinasse a fé àqueles gentios, diz-lhe que os mate e que os coma, porque o que se mata deixa de ser o que é, e o que se come converte-se na substância e nos membros de quem o come. E ambos estes efeitos haviam de obrar a doutrina de S. Pedro naqueles gentios feros e bárbaros. Primeiro haviam de morrer, porque haviam de deixar de ser gentios; e logo haviam de ser comidos e convertidos em membros de S. Pedro, porque haviam de ficar cristãos e membros da Igreja, de que São Pedro é a cabeça. De maneira que, assim como a natureza faz de feras homens, matando e comendo, assim também a graça faz de feras homens, doutrinando e ensinando. Ensinastes o gentio bárbaro e rude, e que cuidais que faz aquela doutrina? Mata nele a fereza, e introduz a humanidade; mata a ignorância, e introduz o conhecimento; mata a bruteza, e introduz a razão; mata a infidelidade, e introduz a fé; e deste modo, por uma conversão admirável, o que era fera fica homem, o que era gentio fica cristão, o que era despojo do pecado fica membro de Cristo e de S. Pedro; Occide et manduca. E como a graça do Espírito Santo, por meio da doutrina da fé, melhor que a arte e melhor que a natureza, de pedras e de animais sabe fazer homens, ainda que os destas conquistas fossem verdadeiramente, ou tão irracionais como os brutos, ou tão insensíveis como as pedras, não era bastante dificuldade esta, nem para desculpar o descuido, nem para tirar a obrigação de os ensinar: Ille vos docebit.


VII
E para que ninguém falte a esta obrigação e a este cuidado, só vos quero lembrar o grande serviço que fareis a Deus, se o fizerdes, e a grande conta que Deus vos há de pedir, se vos descuidardes. É passo, de que me lembro e tremo muitas vezes, o que agora vos direi. Estavam os apóstolos no Monte Olivete em o dia da Ascensão, com os olhos pregados no céu e com os corações dentro nele, porque já se lhes escondera da vista o Mestre e o Senhor, que em si e após si lhos levara. Estavam enlevados, estavam suspensos, estavam arrebatados, e quase não em si de amor, de admiração, de glória, de júbilos, de saudades; eis que aparecem dois anjos e lhes dizem estas palavras: Viri Galilaei, quid statis aspicientes in caelum? Hic Jesus, qui assumptus est a vobis in caelum, sic veniet: Varões galileus, que fazeis aqui olhando para o céu?

Este mesmo Senhor que agora se apartou de vós, há de vir outra vez, porque há de vir a julgar. — Notáveis palavras por certo, e ditas a tais pessoas, em tal lugar e em tal ocasião! De maneira que estranham os anjos aos apóstolos estarem no Monte Olivete olhando para o céu de saudades de Cristo, e para os obrigarem a que se vão logo dali — como se foram — os ameaçam com o dia do Juízo e com a lembrança da conta? Pois, estar em um monte apartado das gentes, estar com os olhos postos no céu, estar arrebatado na contemplação da glória, estar enlevado no amor e saudades de Cristo, é coisa digna de se estranhar e de a estranharem os anjos? Em tal caso, sim, porque se em todos os homens é digno de estranhar não deixarem o mal pelo bem, nos apóstolos era digno de estranhar não deixarem o bem pelo melhor. O ofício e obrigação dos apóstolos era pregar a fé e salvar almas; a ordem que Cristo lhes tinha dado era que se recolhessem a Jerusalém a preparar-se para a pregação com os dons do Espírito Santo, que lhes mandaria, e deixar o Monte Olivete pelo Cenáculo, deixar a contemplação pela escola das línguas, deixar de olhar para o céu para acudir às cegueiras da terra, deixar, enfim, as saudades de Cristo pela saúde de Cristo, não era deixar o bem, senão melhorá-lo, porque era trocar um bem grande por outro maior: era deixar um serviço de Deus por outro maior serviço, uma vontade de Deus por outra maior vontade, uma glória de Deus por outra maior glória. O contemplar em Deus é obra divina, mas o levar almas para Deus é obra diviníssima.


Assim lhe chamou S. Dionísio Areopagita: Opus Dei divinissimum. E a obrigação dos apóstolos e varões apostólicos não é só buscar o divino, senão o mais divino: é deixar o mundo pelo diviníssimo. Por isso lhes estranham os anjos o estarem parados no monte, e com os olhos suspensos no céu; por isso lhes dizem: Quid statis? Que estais aqui fazendo? — como se o que faziam nenhuma comparação tivera com o que haviam de fazer. O que faziam e o que os ocupava eram contemplações, admirações, êxtases, arrebatamentos; o que haviam de fazer, e o em que se haviam de ocupar, era pregar, ensinar, doutrinar, batizar, converter almas, e tudo aquilo em comparação disto, no juízo dos anjos, que melhor que nós o entendem, que é? Um quid, uma coisa que se pode duvidar se é alguma coisa, um muito menos do que devera ser, um estar parados, um não ir por diante: Quid statis? Vede, vede vós e vós — com todos e com todas falo — quão grande serviço fazeis a Deus, quando ensinais os vossos escravos, quando para isso aprendeis as línguas, quando escreveis e estudais o catecismo, quando buscais o intérprete ou o mestre, e quando, talvez, só para este fim o pagais e o sustentais. Oh! ditoso dispêndio! Oh! ditoso estudo! Oh! ditoso trabalho! Oh! ditoso merecimento, e sem igual diante de Deus! Em suma, cristãos, que é maior bem e maior serviço de Deus, e maior glória sua estar ensinando um negrinho da terra, que se estivéreis enlevados e arrebatados no céu: Quid statis aspicientes in caelum?


E se é tão grande o serviço que fazem a Deus os que têm este cuidado, os que o não têm, os que tão descuidados e esquecidos vivem da doutrina, da cristandade e da salvação de seus escravos, que rigorosa, que estreita e que estreitíssima conta vos parece que lhes pedirá Deus? Ameaçam os anjos aos apóstolos com o dia do Juízo, e reparam-lhes em momentos do Monte Olivete. Por quê? Porque eram homens que tinham à sua conta almas alheias, e quem tem almas alheias à sua conta, até de um momento que não cuidar muito delas há de dar muito estreita conta a Deus. Oh! que terrível conta há de pedir Deus no dia do Juízo a todos os que vivemos neste Estado, porque todos temos almas à nossa conta! Os pregadores todas, os pastores as das suas igrejas, os leigos as das suas famílias. Se é tão dificultoso dar boa conta de uma só alma, que será de tantas? S. Jerônimo, sobre tanto deserto, sobre tantas penitências, sobre tantos trabalhos em serviço de Deus e da Igreja, estava sempre tremendo da trombeta do dia do Juízo, pela conta que havia de dar da sua alma. A alma de Santo Hilarião Abade, depois de oitenta anos de vida eremítica, e de tantas e tão insignes vitórias contra o demônio, tremia tanto da conta, que não se atrevia a sair do corpo, estando o santo para expirar, e foi necessário que ele a animasse.
Pois, se os Jerônimos, se os Hilariões, se as maiores colunas da Igreja temem de dar conta de uma alma depois de vidas tão santas, vós, depois das vossas vidas, que é certo não foram tão ajustadas com a lei de Deus como as suas, que conta esperais dar a Deus, não de uma, senão de tantas almas? Uns de cinqüenta almas, outros de cem almas, outros de duzentas almas, outros de trezentas, outros de quatrocentas, e alguns de mil. Muitos há que tendes hoje poucas, mas naquele dia haveis de ter muitas, porque todas as que morreram para o serviço, hão de ressuscitar para a conta. As que tivestes, as que tendes, as que haveis de ter, todas naquele dia hão de aparecer juntas diante do divino tribunal a dar conta cada uma de si, e vós de todas. Certo que eu antes quisera dar conta pela sua parte que pela vossa.

O escravo escusar-se-á com o seu senhor; mas o senhor, com quem se há de escusar? O escravo poder-se-á escusar com o seu pouco entendimento, com a sua ignorância; mas o senhor, com que se escusará? Com a sua muita cobiça? Com a sua muita cegueira? Com faltar à piedade? Com faltar à humanidade? Com faltar à cristandade? Com faltar à fé? Oh! Deus justo! Oh! Deus misericordioso, que nem em vossa justiça, nem em vossa misericórdia acho caminho para saírem estas almas de tão intrincado labirinto! Se a justiça divina acha por onde condenar um gentio, porque não foi batizado, como achará a misericórdia divina por onde salvar um cristão, que foi causa de ele se não batizar?

Oh! que justiças pedirão sobre vós naquele dia tantas infelizes almas, de cuja infelicidade eterna vós fostes causa! Abel pedia justiça a Deus, e salvou-se Abel, e está no céu. Se Abel, se um irmão pede justiça a Deus sobre o irmão que lhe tirou a vida temporal, um escravo, e tantos escravos, que justiça pedirão a Deus sobre o senhor que lhes tirou a vida eterna? Se Abel, se uma alma que se salvou, e que está hoje vendo a Deus, pede justiça, uma alma, e tantas almas, que se condenaram e estão ardendo no inferno, e estarão por toda a eternidade, que justiças pedirão, que justiças clamarão, que justiças bradarão no céu, à terra, ao inferno, aos homens, aos demônios, aos anjos, a Deus? Oh! que espetáculo tão triste e tão horrendo será naquele dia ver a um português destas conquistas — e muito mais aos maiores e mais poderosos — cercado de tanta multidão de índios, uns livres, outros escravos, uns bem, outros mal cativos, uns gentios, outros com nome de cristãos, todos condenados ao inferno, todos ardendo em fogo, e todos pedindo justiça a Deus sobre aquele desventurado homem, que neste mundo se chamou seu senhor?

Ai de mim, dirá um, que me condenei por não ser batizado! Justiça sobre meu ingrato senhor, que me não pagou o serviço de tantos anos, nem com o que tão pouco lhe custava, como a água do batismo! Ai de mim, dirá outro, que me condenei por não conhecer a Deus, nem saber os mistérios da fé! Justiça sobre meu infiel senhor que, mandando-me ensinar tudo o que importava a seu serviço, só do necessário à minha salvação nunca teve cuidado! Ai de mim, dirá outro, que me condenei por passar toda a vida torpemente amigado contra a lei de Deus! Justiça sobre meu desumano senhor, que por suas conveniências particulares me consentiu o pecado, e não quis consentir o matrimônio! Ai de mim, dirá outro, que me condenei por não me confessar nas quaresmas, ou não me confessar a quem me entendesse e me encaminhasse! Justiça sobre meu avarento senhor, que por não perder dois dias de serviço, me não quis dar nem o tempo, nem o lugar, nem o confessor que minha alma havia mister! Ai de mim, dirá finalmente o outro, que me condenei por morrer sem sacerdote nem sacramento! Justiça sobre meu tirano senhor, que por me não chamar o remédio, ou não me mandar levar a ele, me deixou morrer como um bruto! Cão me chamava sempre na vida, e como um cão me tratou na morte. Isto dirá cada um daqueles miseráveis escravos ao supremo juiz, Cristo. E todos juntos bradarão a seu sangue — de que por vossa culpa se não aproveitaram — justiça, justiça, justiça. — Oh! como é sem dúvida que naquele dia conhecereis quem vos dizia e pregava a verdade! Oh! como é sem dúvida que naquele dia do Juízo haveis de mudar de juízo e de juízos! Hoje tendes por ditosos os que têm muitos escravos, e por menos venturosos os que têm poucos: naquele dia os que tiveram muitos escravos serão desventurados, e os que tiveram poucos serão os ditosos, e mais ditoso o que não teve nenhum. Tende-os, cristãos, e tende muitos, mas tende-os de modo que eles ajudem a levar a vossa alma ao céu, e vós as suas. Isto é o que vos desejo, isto é o que vos aconselho, isto é o que vos procuro, isto é o que vos peço por amor de Deus e por amor de vós, e o que quisera que leváreis deste sermão metido na alma.

O Espírito Santo, que hoje desceu sobre os apóstolos, e os ensinou para que eles ensinassem ao mundo, desça sobre todos vós, e vos ensine a querer ensinar, ou deixar ensinar, aquele a quem deveis a doutrina, para que ele por vós, e vós com ele, conseguindo nesta vida — que tão cara vos custa — a graça, mereçais gozar na outra, com grandes aumentos, a glória.



(1) Ele vos ensinará todas as coisas que vos tenho dito (Jo. 14,26).
(2) Dixero, id est, dixi, uti habet Graecum Originale.
(3) Eu não fui enviado senão às ovelhas que pereceram da casa de Israel (Mt. 15,24).
(4) E apareceram repartidas umas como línguas (At. 2,3).
(5) Tenho também outras ovelhas que não são deste aprisco, e importa que eu as traga, e elas ouvirão a minha voz, e haverá um rebanho e um pastor (Jo. 10, 16).
(6) Meu pai opera até hoje, e eu opero também. (Jo. 5, 17).
(7) Senhor, eu creio: ajuda tu a minha icredulidade (Mc. 9,23).
(8) Ele vos ensinará todas as coisas (Jo. 14,26).
(9) De repente veio do céu um estrondo, como do vento que assoprava com ímpeto (At. 2,2).
(10) Todos estes perseveraram unanimamente em oração com as mulheres (At. 1,14).

sábado, 5 de janeiro de 2008

O ensino da Shoah

Stéphane Bruchfeld; Paul A. Levine
« Dites-le à vos enfants » Histoire de la Shoa en Europe, 1933-1945Paris,
Éditions Ramsay, 2000
tradução adaptada
Prefácio de Serge Klarsfeld*

O ensino da Shoah (Holocausto em língua Iídiche) tornou-se indispensável.

O Fórum Internacional de Estocolmo sobre a educação, a pesquisa e a memória da Shoah (26-28 de Janeiro de 2000) veio confirmar a oportunidade da iniciativa tomada, há dois anos, pelo Primeiro Ministro Sueco Goram Persson: criar uma força de intervenção, uma “Task Force”, encarregada de promover este tipo de ensino em numerosos países.

Os nove países integrantes da “Task Force”, Suécia, Estados Unidos, Reino Unido, Israel, Alemanha, Países Baixos, Itália, França e Polónia, reuniram diplomatas, especialistas, professores, organizações não-governamentais, para ajudar países menos avançados no conhecimento da Shoah. Trata-se principalmente de formar professores que saibam, por sua vez, formar gerações de alunos, de estudantes e de professores. Países como a República Checa, a Argentina, a Letónia, a Lituânia, a Ucrânia, a Bulgária, a Rússia, estão prontos para enveredar pelo mesmo caminho.

A resolução comum, à qual se associaram os quarenta e seis países representados em Estocolmo, testemunha esta vontade pedagógica internacional de transmissão da memória da Shoah. Por aquela ocasião, o discurso do Primeiro Ministro francês, Lionel Jospin, em Estocolmo, exprimiu a mesma determinação: O ensino da Shoah, a compreensão das causas que tornaram possível o Holocausto, a homenagem àqueles que o combateram, constitui um dever.

Em França, subscrevemos plenamente este dever de memória e de educação. Se os governos tardaram em reconhecer a responsabilidade do Estado na perseguição e espoliação dos Judeus de França durante a Segunda Guerra Mundial, a obra realizada nestes últimos anos é muito importante… Temos a intenção de criar uma fundação cujo objectivo principal seja o ensino da Shoah. Uma tal fundação não terá relevância se a ajuda e a participação do Estado não lhe forem garantidas de uma forma duradoura. E sê-lo-ão.

Este discurso segue as mesmas linhas do discurso do Presidente da República, Jacques Chirac, a 16 de Julho de 1995, por ocasião da comemoração nacional da razia do “Vélodrome d’Hiver”, a 6 de Julho de 1942: Essas horas negras conspurcaram para sempre a nossa história e são um insulto ao nosso passado e às nossas tradições. Sim, a loucura criminosa do ocupante foi secundada por cidadãos franceses, pelo Estado Francês… A França, pátria das Luzes e dos Direitos do Homem, terra de acolhimento e de asilo, praticou, naquele dia, o irreparável. Faltando à palavra, entregou aos carrascos os seus protegidos …

Transmitir a memória do povo judeu, dos sofrimentos e dos campos de concentração, testemunhar sempre mais, reconhecer os erros do passado e os erros cometidos pelo Estado, não esconder nada das horas sombrias da nossa história, é defender uma ideia do homem, da sua liberdade e da sua dignidade. É lutar contra as forças obscuras, que actuam sem cessar.

No dia 29 de Fevereiro de 2000, a Assembleia Nacional decidiu, por unanimidade, criar um dia nacional de comemoração
“em memória das vítimas dos crimes racistas e anti-semitas do Estado Francês e
em homenagem aos Justos de França.”

Algumas pessoas, sem falar dos negacionistas, sentem-se incomodadas por esta emergência contínua da Shoah e pelo lugar que este acontecimento, pouco estudado durante décadas, tende a ocupar na história contemporânea. Segundo aquelas, trata-se de uma pretensão judaica à unicidade e à palma do martírio, ou então, de um “Massacre dos Inocentes” estatisticamente gigantesco, mas que não difere na sua natureza de massacres anteriores (Arménios) ou simultâneos (Ciganos) ou posteriores (Cambodja, Ruanda, Bósnia, Cosovo), ou supostamente, de um argumento destinado a ajudar à edificação ou ao reforço do Estado de Israel.

Alguns consideram também que, com a mudança de século e de milénio, a história ficou definitivamente para trás, e que é preferível não regressar àquela imensa página negra do século XX, a última página do grande livro da perseguição aos Judeus entre o ano mil e o ano dois mil.

Militante da memória, há mais de trinta anos, como historiador e como homem de acção, gostaria de tentar responder a esta questão inevitável: porque será o ensino da Shoah tão indispensável?

Aquilo que distingue a Shoah de todas as outras tragédias resulta da combinação de vários elementos.

1 – É um drama da civilização europeia.
O genocídio judaico é o resultado de uma operação essencialmente policial, levada a cabo em todo o território europeu, sob impulso alemão, e sempre com cumplicidades locais (à excepção dos países neutros, Espanha, Portugal, Suíça, Suécia, que foram indirectamente cúmplices, quanto mais não fosse, por terem procedido a repressões, recusado a passagem de vistos e, sobretudo, ajudado os países do Eixo na altura da vitória).

2 – É um drama da civilização cristã.
O povo que o nazismo procurou aniquilar é o mesmo que revelou ao mundo o monoteísmo e a Bíblia, o mesmo que deu origem ao cristianismo. Os seus valores morais foram transmitidos pelo cristianismo a todo o Ocidente, sobretudo o quinto mandamento: “Não matarás”. No entanto, a Shoah desenrolou-se sobre o continente europeu, onde, à excepção dos Judeus e de um pequeno número de muçulmanos, todos os habitantes eram cristãos, católicos, protestantes ou ortodoxos. O desprezo de que, durante tanto tempo, os Judeus foram alvo por parte da cristandade facilitou a tarefa dos organizadores da solução final da questão judaica: isso explica a indiferença por parte dos que não participaram nela, mas à qual nunca se opuseram.

3 – É um drama da civilização ocidental.
O genocídio foi concebido e organizado na Europa por um estado ocidental, o Estado Alemão, por um país, a Alemanha, um dos mais avançados do mundo, tanto do ponto de vista económico, social, administrativo, técnico e militar, como cultural e intelectual. Os grandes Aliados estão igualmente implicados, mesmo tendo corajosa e vitoriosamente lutado contra os países do Eixo: a Inglaterra, que fechou as portas da Palestina e deixou passar ao largo barcos carregados de Judeus; os Estados Unidos, que só muito discretamente abriram as suas portas e que nenhum esforço fizeram em 1938 para que a conferência de Évian encontrasse uma solução para o acolhimento maciço dos Judeus europeus.

4 – É um drama, pela sua amplitude sem precedentes.
Em menos de cinco anos, a destruição dos Judeus foi levada a cabo em dois terços, uma vez que, em cerca de nove milhões de Judeus, seis milhões pereceram. Se o Reich tivesse aguentado mais algum tempo, nenhum Judeu teria sido liberto. Se os nazis tivessem podido estender a sua influência a outros continentes, milhões de outros Judeus teriam sido exterminados. Lembremo-nos de que existiam, na época, seis milhões de Judeus fora da Europa.

5 – É uma tragédia da modernidade.
Confrontados com as dificuldades técnicas da eliminação simultânea de milhares de seres humanos, os nazis conceberam uma maquinaria industrial capaz de suprimir as suas vítimas em vastas câmaras de gás camufladas e munidas de fornos crematórios. Uma poderosa e racional organização administrativa, policial e diplomática, baseada na divisão do trabalho, grandes redes ferroviárias e os mais rápidos meios de comunicação (telex, telegramas, despachos, telefones) foram colocados ao serviço da solução final.

6 – É um drama da natureza humana.
Ao abrir perspectivas terríveis sobre a infinita capacidade do homem, supostamente organizado, de produzir o mal, a crueldade nazi não conhece limites. Ela ultrapassa tudo o que até ali se havia podido recear, enfraquecendo a confiança do homem em si próprio e revelando a sua profunda bestialidade.

7 – É um drama indizível.
Após a guerra, a Shoah não recebeu um nome. O processo de Nuremberga contra os criminosos nazis falou de “genocídio dos Judeus”. Com a guerra fria, o silêncio histórico e judicial caiu sobre o Holocausto, e é apenas com a decisão do governo de Israel de se encarregar de Adolf Eichmann e de levantar-lhe, em 1961, um processo histórico, o da solução final da questão judaica, que a Shoah (ou Holocausto) emerge da noite e do nevoeiro.

8 – É um drama ameaçado de esquecimento ou de negação.
Os negacionistas e outros falsificadores têm tentado apagá-la da história. Horrorizados por esta contestação infame cujo apogeu se situa no final dos anos setenta, os resgatados dos campos de extermínio e respectivos descendentes procuraram ripostar, reunindo a indispensável documentação sobre cada aspecto do Holocausto, recolhendo testemunhos, reforçando e renovando os centros de documentação já existentes, criando ainda novos centros mais poderosos. A geração dos resgatados, bem como a dos filhos dos deportados e dos sobreviventes, cumprem assim uma missão científica e moral, com desígnios à altura da tragédia: escrever o nome e a história de cada vítima. A Shoah deve representar, não os milhões de vítimas, mas cada uma delas em particular, a fim de que a todos sejam restituídos o seu estado civil, o seu itinerário, a sua dignidade. A fim de que todas possam sair do esquecimento e do anonimato.

A fim de que, de objectos da História, estes nomes se tornem sujeitos da História.Porquê então um ensino da Shoah? Para se evitar, no Ocidente, o regresso da barbárie, qualquer que seja a sua forma. O genocídio judaico interpela a consciência universal devido à sua amplitude, ao que ele revelou de inquietante sobre o homem, e à sua incapacidade de impedir novos massacres e genocídios noutras regiões do mundo. O perigo é real, e a nossa vigilância, sem cair no alarmismo, deve ser permanente e preventiva. O racismo, a xenofobia e o anti-semitismo estão sempre presentes, e a extrema-direita continua a ser uma família política em actividade na Europa, mesmo fora dos tempos de crise. A Shoah é o verdadeiro produto daquilo que tais forças são capazes de gerar.O estudo do Holocausto, se passa por ser uma lição de história, é também uma lição de moral e de civismo, que ensina que o valor fundamental é o respeito absoluto pela pessoa humana. Será assim que os nossos jovens conseguirão, não só manter e reforçar, sob todos os seus aspectos, a democracia no Ocidente, mas também combater a desumanidade que ainda causa grandes estragos em amplas regiões do planeta.


Serge Klarsfeld
*Serge Klarsfeld, advogado e historiador, é presidente da Associação dos Filhos e Filhas dos Deportados Judeus de França. Milita há trinta anos pelo julgamento dos crimes contra a humanidade.