sábado, 5 de janeiro de 2008

O ensino da Shoah

Stéphane Bruchfeld; Paul A. Levine
« Dites-le à vos enfants » Histoire de la Shoa en Europe, 1933-1945Paris,
Éditions Ramsay, 2000
tradução adaptada
Prefácio de Serge Klarsfeld*

O ensino da Shoah (Holocausto em língua Iídiche) tornou-se indispensável.

O Fórum Internacional de Estocolmo sobre a educação, a pesquisa e a memória da Shoah (26-28 de Janeiro de 2000) veio confirmar a oportunidade da iniciativa tomada, há dois anos, pelo Primeiro Ministro Sueco Goram Persson: criar uma força de intervenção, uma “Task Force”, encarregada de promover este tipo de ensino em numerosos países.

Os nove países integrantes da “Task Force”, Suécia, Estados Unidos, Reino Unido, Israel, Alemanha, Países Baixos, Itália, França e Polónia, reuniram diplomatas, especialistas, professores, organizações não-governamentais, para ajudar países menos avançados no conhecimento da Shoah. Trata-se principalmente de formar professores que saibam, por sua vez, formar gerações de alunos, de estudantes e de professores. Países como a República Checa, a Argentina, a Letónia, a Lituânia, a Ucrânia, a Bulgária, a Rússia, estão prontos para enveredar pelo mesmo caminho.

A resolução comum, à qual se associaram os quarenta e seis países representados em Estocolmo, testemunha esta vontade pedagógica internacional de transmissão da memória da Shoah. Por aquela ocasião, o discurso do Primeiro Ministro francês, Lionel Jospin, em Estocolmo, exprimiu a mesma determinação: O ensino da Shoah, a compreensão das causas que tornaram possível o Holocausto, a homenagem àqueles que o combateram, constitui um dever.

Em França, subscrevemos plenamente este dever de memória e de educação. Se os governos tardaram em reconhecer a responsabilidade do Estado na perseguição e espoliação dos Judeus de França durante a Segunda Guerra Mundial, a obra realizada nestes últimos anos é muito importante… Temos a intenção de criar uma fundação cujo objectivo principal seja o ensino da Shoah. Uma tal fundação não terá relevância se a ajuda e a participação do Estado não lhe forem garantidas de uma forma duradoura. E sê-lo-ão.

Este discurso segue as mesmas linhas do discurso do Presidente da República, Jacques Chirac, a 16 de Julho de 1995, por ocasião da comemoração nacional da razia do “Vélodrome d’Hiver”, a 6 de Julho de 1942: Essas horas negras conspurcaram para sempre a nossa história e são um insulto ao nosso passado e às nossas tradições. Sim, a loucura criminosa do ocupante foi secundada por cidadãos franceses, pelo Estado Francês… A França, pátria das Luzes e dos Direitos do Homem, terra de acolhimento e de asilo, praticou, naquele dia, o irreparável. Faltando à palavra, entregou aos carrascos os seus protegidos …

Transmitir a memória do povo judeu, dos sofrimentos e dos campos de concentração, testemunhar sempre mais, reconhecer os erros do passado e os erros cometidos pelo Estado, não esconder nada das horas sombrias da nossa história, é defender uma ideia do homem, da sua liberdade e da sua dignidade. É lutar contra as forças obscuras, que actuam sem cessar.

No dia 29 de Fevereiro de 2000, a Assembleia Nacional decidiu, por unanimidade, criar um dia nacional de comemoração
“em memória das vítimas dos crimes racistas e anti-semitas do Estado Francês e
em homenagem aos Justos de França.”

Algumas pessoas, sem falar dos negacionistas, sentem-se incomodadas por esta emergência contínua da Shoah e pelo lugar que este acontecimento, pouco estudado durante décadas, tende a ocupar na história contemporânea. Segundo aquelas, trata-se de uma pretensão judaica à unicidade e à palma do martírio, ou então, de um “Massacre dos Inocentes” estatisticamente gigantesco, mas que não difere na sua natureza de massacres anteriores (Arménios) ou simultâneos (Ciganos) ou posteriores (Cambodja, Ruanda, Bósnia, Cosovo), ou supostamente, de um argumento destinado a ajudar à edificação ou ao reforço do Estado de Israel.

Alguns consideram também que, com a mudança de século e de milénio, a história ficou definitivamente para trás, e que é preferível não regressar àquela imensa página negra do século XX, a última página do grande livro da perseguição aos Judeus entre o ano mil e o ano dois mil.

Militante da memória, há mais de trinta anos, como historiador e como homem de acção, gostaria de tentar responder a esta questão inevitável: porque será o ensino da Shoah tão indispensável?

Aquilo que distingue a Shoah de todas as outras tragédias resulta da combinação de vários elementos.

1 – É um drama da civilização europeia.
O genocídio judaico é o resultado de uma operação essencialmente policial, levada a cabo em todo o território europeu, sob impulso alemão, e sempre com cumplicidades locais (à excepção dos países neutros, Espanha, Portugal, Suíça, Suécia, que foram indirectamente cúmplices, quanto mais não fosse, por terem procedido a repressões, recusado a passagem de vistos e, sobretudo, ajudado os países do Eixo na altura da vitória).

2 – É um drama da civilização cristã.
O povo que o nazismo procurou aniquilar é o mesmo que revelou ao mundo o monoteísmo e a Bíblia, o mesmo que deu origem ao cristianismo. Os seus valores morais foram transmitidos pelo cristianismo a todo o Ocidente, sobretudo o quinto mandamento: “Não matarás”. No entanto, a Shoah desenrolou-se sobre o continente europeu, onde, à excepção dos Judeus e de um pequeno número de muçulmanos, todos os habitantes eram cristãos, católicos, protestantes ou ortodoxos. O desprezo de que, durante tanto tempo, os Judeus foram alvo por parte da cristandade facilitou a tarefa dos organizadores da solução final da questão judaica: isso explica a indiferença por parte dos que não participaram nela, mas à qual nunca se opuseram.

3 – É um drama da civilização ocidental.
O genocídio foi concebido e organizado na Europa por um estado ocidental, o Estado Alemão, por um país, a Alemanha, um dos mais avançados do mundo, tanto do ponto de vista económico, social, administrativo, técnico e militar, como cultural e intelectual. Os grandes Aliados estão igualmente implicados, mesmo tendo corajosa e vitoriosamente lutado contra os países do Eixo: a Inglaterra, que fechou as portas da Palestina e deixou passar ao largo barcos carregados de Judeus; os Estados Unidos, que só muito discretamente abriram as suas portas e que nenhum esforço fizeram em 1938 para que a conferência de Évian encontrasse uma solução para o acolhimento maciço dos Judeus europeus.

4 – É um drama, pela sua amplitude sem precedentes.
Em menos de cinco anos, a destruição dos Judeus foi levada a cabo em dois terços, uma vez que, em cerca de nove milhões de Judeus, seis milhões pereceram. Se o Reich tivesse aguentado mais algum tempo, nenhum Judeu teria sido liberto. Se os nazis tivessem podido estender a sua influência a outros continentes, milhões de outros Judeus teriam sido exterminados. Lembremo-nos de que existiam, na época, seis milhões de Judeus fora da Europa.

5 – É uma tragédia da modernidade.
Confrontados com as dificuldades técnicas da eliminação simultânea de milhares de seres humanos, os nazis conceberam uma maquinaria industrial capaz de suprimir as suas vítimas em vastas câmaras de gás camufladas e munidas de fornos crematórios. Uma poderosa e racional organização administrativa, policial e diplomática, baseada na divisão do trabalho, grandes redes ferroviárias e os mais rápidos meios de comunicação (telex, telegramas, despachos, telefones) foram colocados ao serviço da solução final.

6 – É um drama da natureza humana.
Ao abrir perspectivas terríveis sobre a infinita capacidade do homem, supostamente organizado, de produzir o mal, a crueldade nazi não conhece limites. Ela ultrapassa tudo o que até ali se havia podido recear, enfraquecendo a confiança do homem em si próprio e revelando a sua profunda bestialidade.

7 – É um drama indizível.
Após a guerra, a Shoah não recebeu um nome. O processo de Nuremberga contra os criminosos nazis falou de “genocídio dos Judeus”. Com a guerra fria, o silêncio histórico e judicial caiu sobre o Holocausto, e é apenas com a decisão do governo de Israel de se encarregar de Adolf Eichmann e de levantar-lhe, em 1961, um processo histórico, o da solução final da questão judaica, que a Shoah (ou Holocausto) emerge da noite e do nevoeiro.

8 – É um drama ameaçado de esquecimento ou de negação.
Os negacionistas e outros falsificadores têm tentado apagá-la da história. Horrorizados por esta contestação infame cujo apogeu se situa no final dos anos setenta, os resgatados dos campos de extermínio e respectivos descendentes procuraram ripostar, reunindo a indispensável documentação sobre cada aspecto do Holocausto, recolhendo testemunhos, reforçando e renovando os centros de documentação já existentes, criando ainda novos centros mais poderosos. A geração dos resgatados, bem como a dos filhos dos deportados e dos sobreviventes, cumprem assim uma missão científica e moral, com desígnios à altura da tragédia: escrever o nome e a história de cada vítima. A Shoah deve representar, não os milhões de vítimas, mas cada uma delas em particular, a fim de que a todos sejam restituídos o seu estado civil, o seu itinerário, a sua dignidade. A fim de que todas possam sair do esquecimento e do anonimato.

A fim de que, de objectos da História, estes nomes se tornem sujeitos da História.Porquê então um ensino da Shoah? Para se evitar, no Ocidente, o regresso da barbárie, qualquer que seja a sua forma. O genocídio judaico interpela a consciência universal devido à sua amplitude, ao que ele revelou de inquietante sobre o homem, e à sua incapacidade de impedir novos massacres e genocídios noutras regiões do mundo. O perigo é real, e a nossa vigilância, sem cair no alarmismo, deve ser permanente e preventiva. O racismo, a xenofobia e o anti-semitismo estão sempre presentes, e a extrema-direita continua a ser uma família política em actividade na Europa, mesmo fora dos tempos de crise. A Shoah é o verdadeiro produto daquilo que tais forças são capazes de gerar.O estudo do Holocausto, se passa por ser uma lição de história, é também uma lição de moral e de civismo, que ensina que o valor fundamental é o respeito absoluto pela pessoa humana. Será assim que os nossos jovens conseguirão, não só manter e reforçar, sob todos os seus aspectos, a democracia no Ocidente, mas também combater a desumanidade que ainda causa grandes estragos em amplas regiões do planeta.


Serge Klarsfeld
*Serge Klarsfeld, advogado e historiador, é presidente da Associação dos Filhos e Filhas dos Deportados Judeus de França. Milita há trinta anos pelo julgamento dos crimes contra a humanidade.

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