Por Alexsander Lemos de Almeida Gebara
O texto “Raça e história” de Claude Lévi-Strauss, publicado em 1952, foi escrito sob encomenda da United Nations Educational Scientific and Cultural Organization (Unesco) como parte de uma coleção intitulada La question raciale devant la science moderne. Não é difícil compreender algumas das razões que pautaram a encomenda. A Segunda Guerra Mundial havia recentemente marcado a história como um dos acontecimentos mais trágicos, violentos e devastadores de todos os tempos e, a despeito de suas razões políticas, parte de seu motor ideológico funcionava com um combustível bastante inflamável, o racismo.
Entretanto, a Segunda Grande Guerra não foi o único e nem o último dos processos geopolíticos excludentes e opressores que derivam da idéia de uma suposta hierarquia racial. Basta, como exemplo, apontar o controle colonial que boa parte dos países da Europa Ocidental exercia, ainda na década de 1950, sobre grandes porções do território do globo, mais especialmente sobre o continente africano e o sudeste asiático. Em suas origens, tal colonialismo legitimava sua existência exatamente nas suposições de uma hierarquia “racial” oriunda da “antropologia” do final do século XIX. De fato, as chagas do racismo expostas pela Segunda Guerra Mundial teriam grande efeito no desencadeamento das lutas pela libertação das regiões coloniais nas décadas seguintes.
Desta forma, também não parece muito difícil compreender qual seria o tom mais geral do referido texto de Lévi-Strauss, qual seja, a desconstrução, a crítica e a condenação das perspectivas que continuavam a hierarquizar as diferentes “raças” ou culturas do mundo.
Não é por acaso, portanto, que o texto comece com a afirmação de que não há nada que comprove, cientificamente, a superioridade de uma raça sobre a outra. Mas não é apenas isso, o autor também não se contenta com a possibilidade de “medir” supostas diferentes contribuições das “raças” ao patrimônio comum da humanidade, pela simples razão de que tal atitude seria uma espécie de inversão da doutrina “racista”, uma vez que continuaria creditando à “raça” o motivo das diferenças culturais. Ou seja, basicamente, o ponto inicial da crítica é a confusão freqüente então entre “raça”, no sentido biológico do termo, e “cultura”.
Por outro lado, Lévi-Strauss também não pode deixar de notar a diversidade das formas culturais humanas. Diversidade esta que só faz sentido na relação entre elas, uma vez que se não se relacionassem, não haveria nem mesmo a percepção da diversidade. Neste sentido, as culturas não são em si, mas sim em relação à. Esta constatação faz surgir um tema que permeia todo o texto, qual seja: “existem nas sociedades humanas, simultaneamente em elaboração, forças trabalhando em direções opostas: umas tendem à manutenção, e mesmo à acentuação dos particularismos; as outras agem no sentido da convergência e da afinidade” (Lévi-Strauss, 1993, p.331).
A diversidade, apesar de não ser mensurável, vinha sendo comumente retratada como uma diferença derivada de um processo evolutivo, ou seja, enquanto algumas culturas evoluíram, outras permaneceram estáticas. Ora, supor que alguma cultura estaria isenta da influência do tempo seria propor um absurdo. Entretanto, tal absurdo permaneceu por muito tempo como sustentáculo das teorias evolucionistas sociais, que viam nas sociedades “primitivas” um estágio anterior do desenvolvimento da cultura ocidental1.
Duas questões passam a dominar o texto a partir de então, quais sejam: como se explica a diversidade? E como as diferentes culturas interagem? Dado o fato de que todas as culturas dispõem do mesmo “material básico” – ou seja, “todos os homens, sem exceção, possuem uma linguagem, técnicas, uma arte, conhecimentos positivos, crenças religiosas, uma organização social, econômica e política” (Lévi-Strauss, 1993, p.349) – as diferenças estariam baseadas na “dosagem” de cada um desses elementos para cada uma delas.
Assim, para uma compreensão mais ampla do “outro” faz-se necessária uma mudança de perspectiva, ou ao menos na crítica da perspectiva tradicional com a qual a sociedade ocidental enxerga o “outro”. Dominado pela idéia de “progresso” e, logo, pela construção de sua história como uma evolução paulatina e relativamente constante, o Ocidente toma-se como modelo, o que redunda na explicação evolucionista social anteriormente criticada. Ou seja, é preciso rever o próprio conceito de progresso, que o autor classifica então como não linear e ocorrendo aos “saltos”.
Uma vez que a cultura ocidental trilhou um caminho de progressão técnica para sua reprodução e expansão, é com base nesse conceito que observa as demais, tornando-se incapaz de perceber eventuais “desenvolvimentos” de outras culturas que trilharam outros caminhos2. Deste ângulo de visão, quaisquer progressos técnicos de outras sociedades são vistos como obra do “acaso”, diferentemente da sociedade ocidental que “progride” pela reflexão e investimento objetivo e consciente.
A diferença técnica da sociedade ocidental, dessa forma, não pode ser índice de uma superioridade em si, mas deve ser tratada apenas como característica histórica específica. Mas Lévi-Strauss vai ainda mais além. Mesmo a conjunção de fatores que resultaram nesse desenvolvimento específico não pode ser creditada unicamente à história ocidental.
É aqui que entra a segunda das questões esboçadas acima, ou seja, como as diferentes culturas interagem? Segundo o autor, para que qualquer forma de desenvolvimento se torne possível, é necessária uma conjunção de inúmeros fatores, ou seja, em última análise trata-se de uma questão de probabilidade3. A metáfora utilizada no texto remete às probabilidades de uma determinada sequência numérica ocorrer em seguidas rodadas de uma única roleta. Dessa forma, a probabilidade da bolinha cair no número 1, depois no número 2, e assim sequencialmente até o número 9, por exemplo, é muito pequena. No entanto, se utilizássemos um número maior de roletas, e pudéssemos selecionar o resultado de qualquer uma delas a cada rodada, as probabilidades seriam ampliadas.
Transposta à situação de contatos culturais, conclui-se que quanto maior o número de contato entre culturas diferentes, maiores as probabilidades de desenvolvimentos específicos em quaisquer delas. Dessa forma, Lévi-Strauss procura valorizar a coexistência de diferentes estruturas culturais como forma de impulsionar o “desenvolvimento” de todas elas. Entretanto, essas considerações o levam de volta à tensão expressa no início de seu texto, entre as tendências por um lado particularistas, e por outro homogeneizadoras, resultantes do contato cultural. Uma tensão paradoxal, pois se o contato com outras culturas amplia as possibilidades de desenvolvimentos, ao mesmo tempo faz com que tendam a se tornar cada vez mais parecidas. De fato, a distinção entre “história cumulativa” e “estacionária” ganha aqui uma definição mais ampla:
“... pode-se dizer que a história cumulativa é a forma de história
característica desses super-organismos sociais que constituem os grupos de
sociedades i.e., das sociedades que têm contatos com outras, ao passo que a
história estacionária – se é que ela existe verdadeiramente – seria a marca
deste gênero de vida inferior, que é o das sociedades solitárias” (Lévi-Strauss,
p.361).
Enfim, na resposta à questão sobre como as diferentes sociedades e culturas interagem, encontra-se a valorização da diferença como elemento produtivo. É justamente o afastamento diferencial entre as culturas que oferece as maiores probabilidades de configuração de novos elementos de desenvolvimento para todas elas.
Desta forma, o texto termina com uma recomendação às instituições internacionais (não nos esqueçamos que a encomenda do artigo partiu da Unesco), no sentido de preservar a diversidade cultural, não significando com isso mantê-las intactas, mas incitando os desenvolvimentos e potencialidades de cada uma delas.
Certamente, uma série de críticas pode e deve ser feita ao texto de Strauss, mas este não é o espaço adequado para apresentá-las, uma vez que não se trata de uma revisão da teoria antropológica, mas sim de observar a importância desse ensaio no contexto de reflexão sobre os direitos humanos na sociedade contemporânea.
Neste sentido, basta notar alguns exemplos de acontecimentos e processos geopolíticos internacionais deste meio século posterior à publicação original, tais como a resistência dos países europeus às demandas por independência nas colônias asiáticas e africanas até as décadas de 1960 e 1970; a divisão global em blocos políticos durante a Guerra Fria até o final da década de 1980; a contínua exploração econômica sobre o sul global até os dias atuais; as manifestações xenófobas na Europa contra os imigrantes; os incessantes embates entre judeus e palestinos, (para citar apenas alguns) para perceber que a lição enunciada por Strauss, sobre a impossibilidade de hierarquizar a diversidade, e de fato, a extrema importância desta diversidade no desenvolvimento mundial ainda não foi apreendida, de maneira que sua leitura ainda se mantém, até hoje, na ordem do dia.
Alexsander Lemos de Almeida Gebara é professor adjunto de história da África da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Esta resenha foi feita a partir do capítulo do livro Antropologia Estrutural II:
- LÉVI-STRAUSS, C. “Raça e história”. In: Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 4ª. ed, p. 328-366, 1993.
A imagem da capa é de um livro publicado posteriormente com o ensaio de Lévi-Strauss:
- LÉVI-STRAUSS, C. Raça e história. 7ª. ed. Portugal: Editorial Presença, 2003. (Universidade).
Notas
1 Mesmo uma leitura leviana e equivocada do texto de Strauss poderia concluir que as diferenças esboçadas pelo autor entre “história cumulativa” e “história estacionária” traçam uma diferença entre culturas que se desenvolvem e outras que permanecem paradas. Claro está que esta não é a leitura apropriada. Para uma avaliação desses conceitos ver Goldman, M. “Lévi-Strauss e o sentido da história”. Revista de Antropologia, vol. 42, n 1-2, 1999.
2 A título de exemplo, Strauss sugere, por exemplo, que as culturas orientais acumularam um conhecimento muito maior sobre o corpo humano, esta “máquina suprema”, do que o próprio Ocidente. Conclui-se que, dessa forma, o caminho trilhado pelas culturas orientais foi diferente, mais “atrasado” com relação a conhecimentos técnico-mecânicos e mais “adiantado” no conhecimento do corpo humano.
3 Nunca é demais relembrar que “desenvolvimento” no sentido empregado aqui não tem a conotação de “progresso” em sentido único, mas sim de transformações quaisquer, a despeito de suas importâncias no processo de diferenciação ao longo do tempo.
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