sábado, 3 de fevereiro de 2007

Com o Shema nos Lábios


Uma resenha de “Argônio” de Primo Levi*


"Eu escrevo porque eu sou um químico. Meu trabalho proveu minha matéria-prima, o núcleo para o qual coisas unem... Química é uma luta com assunto, uma obra-prima
de racionalidade, uma parábola existencial... Química ensina vigilância
combinada com razão".

A atmosfera “construída” pelos esclarecidos e iluminados homens do Aufklãrung[1], pretendia oferecer ao homem, amputado de sua condição de sujeito por anos de obscurantismo e medo, uma maioridade[2], uma liberdade, até então, desconhecida. Nascia a uma nova idade, pretendia-se, e se em sua faceta mais exposta, permitia a vitória da razão, da ciência, da liberdade de expressão, em seu subterrâneo simbólico, nem tudo eram luzes: um processo desumano de contínua disciplinarização, confinava o homem num conceito preestabelecido de “normalidade”. Neste não havia espaço para a subjetividade, e a modernidade, inaugurada sobre o monopólio científico da verdade, julgou-lhe ré de pena capital. Neste contexto, teciam-se batalhas diversas: dualidades e dilemas proliferavam. Um dos mais importantes, sobre o qual grandes teóricos se debruçaram, estava o da questão judaica.

Dialogar com esta nova era, eis o desafio imposto ao judeu na Europa, principalmente desde a Revolução Francesa. Neste diálogo, se é que em algum momento houve de fato algum, o judeu era o Outro. Sem pátria, errante, nômade, diaspórico, deicida. Sob o olhar desconfiado dos que permitem sua presença “desconfortável”, eles estavam por toda a Europa, transversalmente inseridos em todos os povos, classes, falando todas as línguas, permanecendo, no entanto, judeus. Eternamente estrangeiros em locais onde habitavam a gerações.

São estes judeus, o tema de “Argônio”, um dos 21 textos de “A Tabela Periódica”, um livro de memórias e composições do escritor italiano Primo Levi. Cada texto recebe o nome de um elemento químico, uma referência à sua formação acadêmica. Em “Argônio”, Levi escreve sobre seus antepassados, avós e tios (esclarecendo que este último termo é atribuído a várias gerações de parentes), e sua sensibilidade imensurável mistura terna reverência, humor e reflexão, numa narrativa que toca com precisão, beleza e lucidez temas essenciais da tentativa de diálogo do judaísmo com a modernidade, silenciada em seu máximo momento, pelo campo de concentração. Primo Levi apresenta-se simplesmente como um observador, e as situações por eles descritas nos auxiliam na tentativa de compreender os dilemas que se perpetuaram, na medida em que também nos presenteiam com sua supremacia literária.

Utilizando as origens gregas que deram origem aos nomes dos gases nobres, “o Novo”, “o Oculto”, “o Inativo”, “o Estrangeiro”, para comparar estes elementos químicos, “inertes, tão satisfeitos em sua condição, que não interferem em nenhuma reação química, não se combinam com nenhum outro elemento”, aproxima-os de seus antepassados. É impossível não pensar na renovação constante da identidade judaica, uma identidade “armazenada”, circunscrita ao contorno talmúdico, paralela a sua exclusão social, e conservando desde a Diáspora a “consciência de sua identidade primitiva, reforçada graças a pontos de referência religiosa e culturais comuns e graças a redes de intercâmbio ativos”, como escreveu Victor Karady[3]. A conservação da autonomia cultural, administrativa, jurídica, política e religiosa da comunidade judaica, aponta para a esta atitude de abstenção, digna, voluntária ou aceita, à margem do grande rio da vida, observada por Primo Levi em seus antepassados, numa rejeição recíproca, uma barreira simétrica construída entre o judeu e a cristandade, numa clara expressão da vulnerabilidade gerada por ela.

Um das memoráveis histórias narradas por Primo Levi em “Argônio”, faz alusão às injúrias sofridas por seu pai, na saída da escola, quando as crianças zombavam de “suas orelhas de porco e burro”, uma referência arbitrária ao manto de oração, cujas dobras, seguiam preceitos da lei judaica, ignorados pelos zombadores, numa atitude ilustrativa do desprezo imposto ao desconhecido, ignorado, diferente. Mais tarde estes mantos foram utilizados pelos nazistas para confeccionar as roupas de baixo dos prisioneiros do campo, informa ele a seguir. A vulnerabilidade chegava ao máximo.

Num outro momento, a “tensão entre a vocação divina e a miséria cotidiana do exílio”, como pontua Primo Levi nos oferece reflexão sobre a dualidade deste povo, “escolhido”, e massacrado. À margem, numa Europa tencionada, onde o Estado-Nação tinha como premissa a territoriedade, vivia o judeu, sem pátria, sem estado, aludindo como “terra prometida”, o solo onde seus antepassados, “Abraão, Isaque e Jacó”, repousaram em algum momento há alguns milhares de anos. Surgiram a emancipação, a assimilação e a incorporação, promessas de cidadania da modernidade, ao judeu que abrisse mão de ser judeu. Herdeiro do judeu da corte, que negociava com o monarca privilégios e segurança para os judeus do reino, em troca de empréstimos que colhia nesta mesma massa judaica, o judeu emancipado possuía direitos civis, e via na assimilação garantias de ascensão social e sobrevivência. Mas, o que era um judeu emancipado? Um judeu que se convertera ao cristianismo, que ocupava cargos públicos, mas que permanecia judeu, embora, na própria comunidade judaica, já não encontrasse referência disto. Quem o “acusava” de ser judeu? O outro. Que atemorizado, diante do diferente, não via no judeu o centauro, mas o minotauro, seu inverso simbólico. A modernidade era um labirinto, e o caminho “teimosamente se bifurca em outro, e ainda teimosamente se bifurca em outro” como escreve e repete Borges[4]. O judeu era o banqueiro, o explorador, o estranho, de hábitos religiosos, alimentares questionáveis... Acusado, inclusive por seus membros, como por Karl Marx, o povo judeu se detinha na fronteira da sociedade, enquanto aos olhos dos Góis (gentios), o dinheiro era o Deus zeloso de Israel[5]. Este painel histórico revela a íntima relação entre judeus e governos, facilitada pela indiferença da burguesia, no final do século XIX, mas permite também perceber que na medida em que a comunidade judaica, já não financeiramente organizada, ainda permanecia aos olhos do mundo como o “judeu conceitual”, como afirmou Hannah Arendt[6]. Como grupo o povo judeu da Europa Ocidental se desintegrou junto com a idéia de Estado-Nação, no processo pós Primeira Guerra Mundial. Estava pronto o palco para a propagação do anti-semitismo, havia o ódio público contra o judeu, esclarecido por Sartre, havia a mentira dos nazistas, de que o judeu era o responsável pelas perdas econômicas da cristandade, havia o mito deicida, havia a resignação do judeu em aceitar o gueto, simbólico ou real, numa atitude milenar do povo acusado de roubar a primogenitura de seu irmão, desde Jacó.

Por que o judeu? Esta é a pergunta que não cala na minha alma, enquanto leio o texto de Primo Levi. Seria sua orgulhosa autodefinição de “povo escolhido”, “o povo de Israel”, para usar as palavras de Levi, suficiente para evocar o ódio, ou pelo menos a conivência com ele, de quase toda uma Europa? Não pretendo encontrar respostas fáceis, como a sugerida por Goldhagen[7], em Os carrascos voluntários de Hitler, que na tentativa de explicar o Holocausto, faz com o alemão, o que o nazismo fez do judeu, cria um “alemão conceitual.” Pretendo, antes, questionar porque nossos olhos o enxergam com tanto medo. Ou com tanta inveja, como aponta Hannah Arendt na descrição da ralé, parceira e cúmplice européia na tentativa de extermínio.

Weber, no início do século, que agora chamamos passado, no qual nascemos no entanto, relatou o homem disperso em esferas, que partem, amputam, segmentam. É cientista na academia, pai na família, animal no prostíbulo. Weber denuncia nossa jaula de ferro, crítica nossa divisão, fruto da nossa escolha eterna de construir dilemas, e escolher entre o objetivo e o subjetivo, o racional e o irracional, a arte e a ciência. Estamos todos partidos. Num certo sentido todas as buscas humanas, de nós, os gentios, se tornaram idólatras, politeístas, pagãs. A sacralidade da vida foi exilada na esfera privada, e nem nela a cultivamos de fato. Weber denuncia nosso “desencantamento”. E desencantados olhamos o caché como hábito alimentar inexplicável, o torá como um conjunto de leis obsoletas, o talmude como um contorno cultural grotesco, o rabino como um caso de esclerose, a resignação do judeu do campo como uma inexplicável e incômoda submissão, enfim, vamos tingindo o que nos é desconhecido com as cores que usamos para construir o nosso universo, desejosos que isto nos retire nossa frustração e nossas dúvidas.

Num certo sentido, o que mais nos incomodou no judeu foi sempre seu monoteísmo, afirma Lawrence Jaffe[8], um analista junguiano. Para ele o judaísmo é símbolo máximo da individuação, e sua recusa em aceitar os ícones da nossa civilização, fazendo de Maria, simplesmente mulher, como exemplifica Primo Levi, nos incomoda porque nos denuncia. É possível que odiemos tudo que denuncia o nosso fracasso, nós que construímos a modernidade para resolver o fracasso da religião em responder as nossas necessidade e a pós-modernidade para elucidar o fracasso da ciência na nossa capacidade em nos destruir, tão patente na Segunda guerra Mundial, e no Holocausto. A questão judaica nos interpela, a pelo menos, vermos, com lucidez, até aonde fomos capazes de ir, quanto espécie. Nossas vítimas, com o Shema[9] nos lábios, morrem na câmara de gás. Jorge Semprum em A escrita ou a vida, revela seu temor de que a fumaça do crematório, foz onde desembocou o rio da intolerância, da inveja, da incompreensão, da ausência total do que conceituamos como alteridade, se torne inodora.

Primo Levi não suportou esta hipótese. Como Cesare Pavese, também em Turim, encontrou uma “razão para se matar”. Levi escreveu: O objetivo da vida é criar a melhor defesa contra a morte. O povo judeu aceitou o monólogo imposto pela Modernidade, mas nem a emancipação, nem a assimilação, nem a incorporação, fúteis garantias, o protegeram do ódio da ralé, dos nazistas, do outro. Esta falta de tolerância continua atingindo o judeu, o negro, o homossexual, o diferente. Esta incompreensão os aliena da condição humana. Primo Levi comentando sobre a visita, em companhia de seu pai, à casa de sua avó, faz alusão a um bombom estragado, recebido sempre da mesma caixa, que ele ocultava no bolso. Era um ato cheio de vergonha, escreve Levi. É com esta mesma vergonha que eu termino esta resenha.

* LEVI, Primo. A tabela Periódica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994

[1] Termo alemão traduzido como Iluminismo.
[2] Cf. Imanuel Kant, “O que é o Iluminismo”.
[3] Karady, Victor. Los Judíos en la modernidad europea: experiencia de la violencia y utopía. S. XXI, Madri, 2000
[4] Cf. Borges,J.L. Labirinto Elogio da Sombra, 1969
[5] Cf. Marx, Karl. A questão judaica.
[6] Cf. As origens do totalitarismo. Cia das Letras, São Paulo, 1990.
[7] Goldhagen, Daniel Jonah: Os carrascos voluntários de Hitler: o povo alemão e o Holocausto. Cia das Letras, São Paulo, 2002.
[8] Cf. Jaffe, Lawrence: Libertando o coração. Pensamento, São Paulo, 1993.
[9] Oração, cujo enunciado diz, “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Deus”.

Um comentário:

coisasdomundominhanega-paulocesar disse...

Oi Drica..Leio sua resenha com a atenção que merece e arrisco um comentário, como FÃ sou de seus escritos,que de longe torço.Uma leitura de .." Nossa falta de tolerância continua atingindo, como o judeu, o negro, o homossexual, o diferente.
Ao ler nossa, me incluo como um de tudo que escrevo contra..quando leio o diferente..me torno um sujeito que qualifica o judeu,o negro e o homossexual como diferente..Que passa a ser o diferente..

Minha proposta..Retire o "nossa "..uma vez que vc nao apoia esta idéia..e coloque o "outro ",o que tira toda e qualquer qualificação..

Gros bisous