May 4th, 2010 by NPTO.
É óbvio que os jornalistas da Veja já estão partindo do princípio de que, já que comparado à coluna do Reinaldo Azevedo ali do lado, tudo vai parecer bom, a gente pode escrever qualquer coisa.
Eis a resposta da Veja:
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro enviou a VEJA uma carta – divulgada amplamente na internet – sobre a reportagem “A farra antropológica oportunista”, publicada nesta edição da revista. Na carta, Viveiros de Castro diz: “(1) nunca tive qualquer espécie de contato com os responsáveis pela matéria; (2) não pronunciei em qualquer ocasião, ou publiquei em qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no conteúdo como na forma”.
Sua primeira afirmação não condiz com a verdade. No início de março, VEJA fez contato com Viveiros de Castro por intermédio da assessoria de imprensa do Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde ele trabalha. Por meio da assessoria, Viveiros de Castro recomendou a leitura de um artigo seu intitulado “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”, que expressaria sua opinião de forma sistematizada e autorizou VEJA a usar o texto na reportagem de uma maneira sintética.
Também não condiz com a verdade a afirmação feita por Viveiros de Castro no item (2) de sua carta. A frase publicada por VEJA espelha opinião escrita mais de uma vez em seu texto (“Não é qualquer um; e não basta achar ou dizer; só é índio, como eu disse, quem se garante” e “pode-se dizer que ser índio é como aquilo que Lacan dizia sobre ser louco: não o é quem quer. Nem quem simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante”).
O antropólogo Viveiros de Castro pode não corroborar integralmente o conteúdo da reportagem, mas concorda, sim, como está demonstrada em sua produção intelectual, que a autodeclaração não é critério suficiente para que uma pessoa seja considerada indígena.[ênfase - NPTO]
Deixemos de lado os que vão dizer que receber um texto da assessoria de imprensa do lugar onde o cara trabalha autoriza a citar o sujeito como se o tivessem entrevistado.
Vejam a real beleza da coisa: em sua resposta, A VEJA NÃO REPRODUZ A FRASE QUE O EVC DIZ QUE NÃO DISSE, para que o leitor não possa compará-la com a frase que ele disse, e ver que (1) ELAS NÃO SÃO IGUAIS, e (2) A FRASE DO EVC SAIU NA VEJA ENTRE ASPAS, COMO DECLARAÇÃO REPRODUZIDA LITERALMENTE. O leitor tinha todo o direito de achar que era uma frase saída da boca do EVC. Não era: A FRASE FOI INVENTADA PELA VEJA.
O texto do qual a Veja diz que tirou a citação (o que, conforme sua própria confissão, e segundo ficará claro para quem ler o artigo, é falso) é muito difícil. Não se pode esperar que leigos entendam as referência a Lacan, os deleuzismos, a distinção entre differénce e identidade, enfim. É um texto escrito para antropólogos. Não acho que o Lacan esteja ali de graça, nem a idéia deleuziana do devir. Ninguém é obrigado a entender disso, mas quem não entender, favor não escrever sobre isso.
Como regra, só escreva sobre o que você conseguir ler.
Não tenho idéia se as propostas do EVC são boas, mas, ao contrário do cara que escreveu a matéria, e tal como o antropólogo que eles deveriam ter chamado para explicar o assunto para eles, sei que o texto do EVC não tem porra nenhuma a ver com o que a reportagem defende. Pago pra ver um antropólogo que entenda do assunto e diga que é a mesma coisa. A frase da Veja é:
Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena original
É óbvio que o que a Veja está tentando fazer o Viveiros de Castro dizer é que só é índio quem ficou lá pelado comendo mandioca, e, eventualmente, outros índios, no mesmo lugar da mata a vida inteira, até morrer de varíola por volta de 1600.
Nem se vocês enfiarem o Reinaldo Azevedo no cu do cadáver fresco do Lévi-Strauss você vai conseguir fazer essa idéia sair de dentro de um antropólogo. Com muita boa vontade, e, repito, eu não acredito no que vou dizer agora, é só for the sake of argument, esse critério pode corresponder a um dos que o EVC oferece (como suficiente, mas não necessário): o cara estar lá no território ancestral.
Antes de dizer os outros critérios, vale notar o seguinte: o texto é inteiro feito para dizer que quem adota só esse critério está inteiramente errado. Arrumem um antropólogo para ler e vejam o que ele diz.
Além disso, há vários outros critérios: parentesco, parentesco por afinidade (ele diz claramente: quem os índios aceitarem como parentes, é índio), adesão aos valores culturais – que pode ser flutuante, pois, e aqui há um ponto muito importante, parte dos caras querendo virar índio são índios que foram pressionados a virar brancos durante décadas – adesão ao patrimônio cultural (minha expressão, não falo antropologuês bem o suficiente para ainda traduzir). Mesmo no caso dos índios que estão só agora estudando a própria cultura, o EVC oferece uma citação interessante do Sahlins: quando os europeus resolveram reaprender sua própria cultura, que tinham esquecido por séculos, nós chamamos isso de Renascimento.
Repito: não tenho a menor idéia do que seria uma boa política indigenista (e o próprio termo é esquisito). É possível que, se eu conhecesse o assunto a fundo, discordasse do EVC. Agora, eu sei ler, e sei que falsificaram o depoimento do cara. A Veja interpretar errado um texto técnico não é tão grave. O gravíssimo é pegar a interpretação errada, colocar entra aspas, e dizer que é do autor.
Fim de feira completo, falsificação, crime. A Veja deve dinheiro a Eduardo Viveiros de Castro.
Alguém explique para os caras que eles não têm material humano para discutir idéia complicada. Se essa idéia também for complicada demais pra eles, arrumem um macaco que saiba falar por sinais “palavra grande ruuuuuuuim”.
E se me permitem a fixação pós-moderna com a linguagem, o mais interessante na resposta da Veja é o “espelha”. No espelho se vê invertido, direita é esquerda, esquerda é direita, Eduardo Viveiros de Castro é Veja.
PS: o triste é que pode ser que apareça um desses intelectuais de aluguel pra defender a revista. Se aparecer, bring it on.
PSTU: se um ou mais antropólogos quiserem escrever apresentações mais bem feitas do texto do EVC, eu coloco como post, se vocês quiserem. O Igor imagino que vá publicar no Chihuahua.
Um comentário:
demorou pra veja ser processada pela ABA, pelo EVC... eles merecem... estão mentindo deslavadamente... falsificando dados, expressando opiniões racistas, preconceituosas... merecem pagar MUITO caro... talvez se pesar no bolso desses caras asquerosos talvez pensem duas vezes antes de fazer essas investidas reacionárias aos direitos humanos.
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