quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Deu no Jornal da UNICAMP

Antropóloga promove análise etnográfica
das práticas e das representações de ativistas racistas


Pesquisa mapeia discurso

neonazista na rede

PAULO CÉSAR NASCIMENTO


O uso da rede mundial de computadores por neonazistas como espaço para disseminação do racismo e para defesa do ideário da raça ariana é o tema central de dissertação de mestrado apresentada na semana passada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Em Os Anacronautas do Teutonismo Virtual: uma etnografia do neonazismo na Internet, a antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias, orientada pela professora doutora Maria Suely Kofes, investiga e mapeia com profundidade o universo subversivo de sites, portais, comunidades, fóruns, chats, blogs e listas de discussão que abordam a temática racista e revisionista (que tenta invalidar a veracidade histórica do holocausto na Segunda Guerra Mundial e o número de judeus mortos por agentes nazistas).

Sites foram denunciados ao Ministério Público
A minuciosa análise etnográfica das práticas e representações discursivas expostas por ativistas no cyberespaço e a interpretação de elementos mitológicos evidentes no material fartamente disponível, permitiu à pesquisadora constatar que, nos sites analisados, o neonazismo articula mitos, narrativas e rituais em uma estratégia para preservar o teutonismo, ou a homogeneidade absoluta das raças germânicas, conforme a ideologia propagada por Adolf Hitler e seus simpatizantes.

“Os sites observados são profundamente demarcados por um léxico racista e pela ideologia neonazista, que retoma símbolos, mitos e propostas jurídicas, religiosas e políticas do nacional-socialismo”, atesta Adriana. “Os autores constroem e atualizam mitos, inscrevendo na palavra raça uma relação simbólica, polissêmica, enraizada numa ideologia saturada de anacronismo, contradições, ódio e insegurança, ideologia esta que os pretende heróis. Daí nasceu a minha ironia: são os anacronautas, ou seja, anacrônicos, que se mitificam heróis de um tempo imemorial e pretendem resgatar a sua Germânia, ainda que virtualmente”, argumenta.
Extermínio – Para ela, a associação do neonazismo ao revisionismo expressa o racismo em sua radicalidade máxima, orientada por uma luta política que deseja implantar um “racismo de Estado”, conforme denominou Michael Foucault (filósofo francês morto em 1984, aos 58 anos). Nessa forma extremada de pensar, defendida pelos movimentos neonazistas, o Estado deve reunir e proteger a “raça” de seus inimigos, até mesmo por meios de exterminação, se necessário.

Portanto, os sites adotam discursos a fim de compor a seguinte proposta: se a “raça branca” está ameaçada, é preciso reagir. Qual a medida a ser tomada? Um cartaz pinçado por Adriana no site brasileiro Valhalla 88 oferece a sua alternativa:

“No impresso, a incitação ao homicídio é vista como ‘natural’ e a interdição ao casamento racial toma a forma de uma nova guerrilha. A montagem do cartaz sugere que cada visitante reaja violentamente à possibilidade de mistura racial, condensando assim os ideais de ódio expresso pelo discurso racista”, explica Adriana.

Em outro grande portal racista, o norte-americano National Alliance, ao casamento inter-racial é atribuído o valor de “pior que assassinato”. No site, vasto material racista é oferecido, até livros infantis para colorir com a história dos povos arianos.

Esses temas são recorrentes em quase 13 mil sites na Internet e em cerca de duas centenas de comunidades do Orkut, e, se em alguns países são considerados criminosos e retirados do ar, logo são repostos por uma rede que os mantêm praticamente intactos. Segundo a pesquisadora, a grande maioria dessas URLs (endereços de sites na rede) são cópias de cerca de quinhentas principais.

Doutrinação – Ela descobriu ainda que na grande maioria dos sites o ativismo é sugerido e incitado como uma espécie de iniciação, por meio da oferta de adesivos e pôsteres para serem impressos e utilizados: basta que cada pessoa faça o download dos cartazes e panfletos disponíveis no site, imprima algumas cópias destes e os distribua ou cole em locais onde serão lidos pelo maior número de pessoas possível: caixas de correio, inseridos no interior de livros em bibliotecas, espalhados em mesas de lanchonetes, gôndolas de supermercados, livrarias, entre outros.

“A distribuição da propaganda alcança o Povo Branco por duas maneiras: diretamente (através do próprio material) e indiretamente (pela resultante cobertura da mídia). Freqüentemente, mesmo uma pequena, mas bem direcionada, distribuição conduzida por um astuto ativista resulta em primeiras páginas de jornais e cobertura televisiva. Este ativismo construtivo é vitalmente importante, além, é claro, de ser muito divertido e altamente satisfatório!”, sinaliza um dos sites analisados.

Em outras comunidades e em inúmeros fóruns, temas que sensibilizam parcela significativa de internautas, principalmente mulheres, como aborto, estupro e pedofilia, funcionam como porta de entrada para a doutrinação racista. Posteriormente, à medida que navegam pelos sites que lançam mão desse ardil, deparam com indicações de links, literatura e arquivos para download em que a temática neonazista é apresentada.

“Movidas pelo ódio explícito, principalmente dirigido a judeus e a negros, ou pelo medo de que o futuro seja absolutamente ‘não-branco’, a rede racista se conecta a meio milhão de pessoas, que fazem da Internet um grande veículo de divulgação, comunicação, transmissão de arquivos, venda de produtos, enfim, uma grande estrutura para este movimento”, observa a antropóloga.

Campo minado – Adriana acabou pagando o preço pela coragem de pisar em terreno tão minado: foi bombardeada com ameaças em fóruns de discussões na internet durante a árdua coleta de dados para o seu trabalho. Indignada com a apologia criminosa das informações que encontrava nos sites, os denunciou ao Ministério Público. Por conta de ações judiciais, dela e de outros militantes, três sites brasileiros foram retirados do ar desde 2004: White Power SP, Loja ZyklonB e Valhalla88, este um dos sites mais acessados da América Latina, com 250 mil internautas.

“Foi um desafio intelectual e uma reafirmação de minha postura política: por um lado precisava explicá-los, por outro tinha de denunciar os crimes que cometiam”, pondera.
A elaboração da dissertação levou aproximadamente um ano e meio, mas há cerca de cinco anos ela desenvolve o exercício etnográfico em sites racistas, neonazistas e revisionistas, depois de se aproximar do tema pela primeira vez na pesquisa para a monografia da graduação.

Para compor o consistente estudo de 329 páginas, Adriana, além de mergulhar na internet, consultou vasta bibliografia acerca da Segunda Guerra Mundial e, em particular, a respeito do nacional-socialismo, entrevistou sobreviventes de campos de concentração, em São Paulo e em Curitiba, entrou em contato com o movimento negro e o movimento da memória do holocausto e conversou com procuradores, promotores e juízes que lidaram com o crime de racismo, inclusive o mediado por computadores, entre outras providências.

“Essa dissertação de mestrado, que bem se confunde com uma tese de doutorado, tem a importância política de permitir uma compreensão interna dos argumentos nazistas contemporâneos e não teme posicionar-se criticamente, e com exterioridade também, em relação ao seu objeto”, salienta a orientadora Suely Kofes. “É um exemplo a ser estimulado na Universidade entre pesquisa empírica, leitura e discussão teórica, e reflexão”.
A qualidade do trabalho permitiu a Adriana ser aprovada para o doutorado sem a necessidade de se submeter ao exame de seleção. Para a tese, ela se debruçará sobre o fenômeno do movimento neonazista e na sua relação com a construção da identidade germânica apresentada nos sites.


veja mais em http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/novembro2007/ju380pag03.html

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