sábado, 16 de agosto de 2008

RENÉ ARMAND DREIFUSS

RENÉ ARMAND DREIFUSS
TRANSFORMAÇÕES: MATRIZES DO SÉCULO XXI
Resenha
Estrella Bohadana*
Transformações: matrizes do século XXI é o legado com que René Armand Dreifuss, um dos mais brilhantes cientistas políticos da atualidade, falecido em maio de 2003, brinda o leitor. Com essa obra póstuma de quase 700 páginas, o autor do clássico 1964: A Conquista do Estado, publicado pela Editora Vozes em 1980, aumenta o acervo de suas fascinantes pesquisas, apresentando mais uma vez um pensamento de fina prospecção, agudeza e ousadia, pronto a analisar e a denunciar os diferentes liames que tecem os fios do poder.
Mergulhando nas várias articulações das corporações que constituem o sistema de produção global, em Transformações: matrizes do século XXI Dreifuss desvenda os vínculos entre as diferentes corporações e o modo pelo qual estas alimentam as tecnognoseonomias e os pólos motores de desenvolvimento tecnológico e de produção, e por eles são alimentadas.
Dreifuss apresenta uma investigação rica e minuciosa das mutações tecnológicas, aprofundando dois conceitos importantes, elaborados em seu livro A época das perplexidades, de 1996, publicado pela Editora Vozes, hoje na 4a edição: o capacitador teleinfocomputrônico satelital e os tecnobergs.
No que se refere ao capacitador teleinfocomputrônico satelital, esse aprofundamento conceitual revela-se quando o autor demonstra que, como potência, o capacitador retroalimenta as mais diversas descobertas científicas, além de se constituir em potente suporte viabilizador de um novo modo de produção e de novas organizações sociais da produção, ambos sinergeticamente transnacionalizados e realizando-se de maneira global.
A partir dessa formulação, o autor afirma que, com o auxílio dos sistemas de comunicação digitalizada, o planeta ingressa em uma forma de existência que supera distâncias, propiciando inovações na mobilidade e na agregação social, e facilitando, para alguns grupos sociais, a vinculação sistemática, constante, ampla e profunda dos “muito distantes” (em termos de personalidade, cultura e geografia). Ao mesmo tempo, porém, promove a segregação de outros grupos – basta verificar a diminuta participação dos países que constituem o eixo Sul-Sul.
Esses sistemas, por sua vez, ao provocarem seqüências de interação pontual, serial e circunstancial, tornam-se manifestações que se processam tanto dentro de perímetros nacionais, estando espacialmente localizadas, quanto em espaços transfronteiriços, como eventos desterritorializados. Dessa maneira, tais sistemas desempenham papéis essenciais como insumo e como produto final, constituindo-se simultaneamente em instrumento de produção e de serviço, e operador em tempo real. Tendo como traço marcante sua difusão mundial em curtíssimo intervalo de tempo, trata-se de tecnologias aplicadas em todas as atividades do planeta, vinculadas ao existir humano e capazes de afetar todas as funções societárias. Assim, estando a comunicação no comando do cotidiano, o complexo capacitador teleinfocomputrônico satelital delineia também outro paradigma cognitivo.
Aprofundado o conceito do capacitador, Dreifuss, de forma engenhosa, demarca um estádio diferente para designar os tecnobergs, que passariam a determinar os processos substanciais de modificação nos horizontes e no sentido da vida, reformulando as relações entre os Estados e delineando não só uma nova heterotopia econômica transnacional, como também uma nova ordem internacional e transfronteiriça do conhecimento, ambas acopladas a uma heterarquia político-estratégica. Esboçam-se, portanto, os elementos constituintes de outro modo de organização social da produção globalizada, que demanda uma profunda reorganização empresarial. As conseqüências de tal reorganização para o comércio entre as nações contribuem para o desemprego estrutural, em seu formato atual, e para o lazer ampliado de grupos seletos. Ademais, são estimuladas distintas dimensões da pesquisa e da utilização da ciência e da tecnologia, direcionando o processo de produção de conhecimento e de desenvolvimento de saberes e destrezas, bem como de sua aplicação, fortalecendo, como gnoseonomia, os entornos da oikonomia.
No cerne dos tecnobergs, as corporações, que se configuravam em função de uma racionalidade bipolar de instalação das indústrias e dos serviços (doméstico-multidoméstico, local-multinacional), passam a ser globalizadas. Esses tecnobergs alavancam três fenômenos multifacetados, simultâneos, diferenciados e que se reforçam mutuamente: a mundialização de estilos, usos e costumes (metanacional); a globalização tecnológica, produtiva e comercial (transnacional); e a planetarização da gestão (supranacional). Esses fenômenos (também apresentados em A época das perplexidades) são discutidos agora a partir do amplo acoplamento do processo de concentração de controle de propriedade dos meios de produção e comercialização, que se dá em cada segmento dos produtos de consumo de massa. Esse processo de concentração é visto no livro por meio das fusões, alianças e aquisições, em movimentos transnacionais (intra, inter e multissetoriais) e apoiado na interação potencializadora dos variados conhecimentos, interligando ainda mais os processos de mundialização e de globalização.
Nessa dinâmica atual, ao concentrar a propriedade e o controle dos agentes, e oligopolizar os meios de pesquisa e a produção por meio de fusões e incorporações, a nova fase do processo de mundialização e de globalização assegura a produção transnacional, realizada e centrada no que será definido pelo autor como corporações estratégicas.
De maneira inusitada, Dreifuss demonstra como as corporações estratégicas, interagindo por meio de matrizes, definem suas core competences, num processo concentracionista que desmonta a lógica anteriormente prevalente de grandes conglomerados de capital com investimentos diversificados, estipulando agora uma diferente relação entre ciência e tecnologia como eixo de refocalização das cadeias produtivas.
Ao mesmo tempo, o autor mostra como se dá a transição-em-rede das redes para um tecido de pesquisa e produção transnacional, muito mais complexo em seu desenho produtivo e de comercialização, sustentado por conhecimentos e agindo como concentrador de capacidades. Para Dreifuss, neste cenário configura-se uma sucessão infindável de compras, vendas, desmantelamentos e integrações complementares.
Como desdobramento, forma-se também uma heterotopia tecnoprodutiva multinacional, transitória em tempo e em referências, configurando rapidamente uma equivalência gnoseogeonômica, ambas determinadas pelo entrelaçamento de focos indutores de ciência e tecnologia, com a correspondente concentração de conhecimento e disponibilidade para realizações de ponta, através de pólos motores tecnoprodutivos e de plataformas terceirizantes e quarteirizantes de produção e comercialização.
A integração global de operações empresariais e atividades tecnoprodutivas, afirma o autor, compreende não só a luta por mercados e sua partilha, mas também o desenvolvimento de estratégias corporativas de participação nos mercados, buscando formas de compartilhá-los.
A lógica da infonomia ou da gnoseonomia dos tecnobergs e da formação de sociedades de informação é a da primazia das core competences e da determinação de padrões a partir delas, com base na dinâmica de integração de meio, mensagem e conteúdo. Partindo de cada segmento, procura-se expertise nos outros, assim como complementação.
De maneira brilhante, encontramos em Transformações: Matrizes do Século XXI o modo pelo qual as corporações estratégicas do complexo capacitador de conteúdo buscam a fusão ou a absorção de corporações que possam viabilizar suas opções de comando e indução científico-tecnológica (ou seja, que lhes permitam dominar os vários segmentos de conhecimento que o compõem) e de predominância tecnonômica no espaço multimidiático e multifuncional do emergente sistema teleinfocomputrônico satelital de produção e de serviços. As empresas procuram controlar o formato, os meios e o conteúdo.
Finalmente, o autor, retomando os conceitos de mundialização, globalização e planetarização, revela a maneira pela qual a nova dinâmica, galgada por esses fenômenos, bem como as tendências à configuração de hierarquias de conhecimento mutáveis, heterotopias-em-recomposição de pesquisa e produção, poliarquias supranacionais em gestação e heterarquias político-estratégicas convergentes implicam uma multiforme e complexa emergência e constituição de outra realidade.
Realidade paradoxal, posto que, concomitantemente a esse processo, uma significativa parcela da população mundial se encontra alijada dos benefícios de tamanha concentração de conhecimento gerado pelos tecnobergs. Portanto, é imperativo que se repensem outros caminhos que permitam um novo caminhar, a fim de devolver à humanidade a crença de que é possível fazer do planeta Terra um habitat digno de nossa existência.
E, em memória de René Armand Dreifuss, que acreditou na possibilidade de o homem transformar a realidade, vale lembrar a frase com que encerra seu Transformações: Matrizes do Século XXI: “E o jogo continua...”
* Filósofa, doutora em História dos Sistemas de Pensamento – Escola de Comunicação da UFRJ –, autora de vários livros e periódicos e integrante do corpo docente do Mestrado em Educação e Cultura Contemporânea da UNESA – Rio de Janeiro. Esposa de René Dreifuss e responsável pela editoração da obra póstuma, incluindo Transformações: Matrizes do Século XXI, Petrópolis, Editora Vozes, 2004, objeto desta resenha.

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