Agência Brasil
BRASÍLIA - A dificuldade em dissociar o crime de racismo, definido na Lei nº 7.716/89 (Lei Caó), do crime de injúria com caráter de discriminação, definido pelo artigo 140 do Código Penal, é apontada por especialistas como uma das causas determinantes para que os acusados por prática de racismo tenham penas abrandadas e, em muitos casos, prescritas.
- Os ativistas do movimento negro reclamam muito no sentido de que há poucas condenações em nosso país. Em geral, os processos envolvem xingamentos e falas com injúria racial; negativa de venda de bens, de prestação de serviços e de hospedagem; e racismo via internet - informa o advogado e ativista contra a discriminação racial Luiz Fernando Martins da Silva, que foi ouvidor da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) entre 2005 e 2007.
- As formas mais rotineiras de se praticar o racismo são dissimuladas e, na maioria das vezes, verbalizadas - explica o promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) Libanio Alves Rodrigues.
- Dessa forma, é relativamente fácil para um advogado fazer com que uma ação por crime de racismo seja alterada para injúria, cuja pena é bem mais branda, avalia.
Segundo o promotor, durante o andamento das ações a vantagem fica mais evidente.
- O crime de discriminação previsto na Lei Caó é passível de ação civil pública, sem prazo de prescrição, podendo ser movido pelo Ministério Público. Ao ser classificado por injúria, prescreve após seis meses, contados a partir do ato, e só pode ser movido pela parte ofendida, uma vez que trata-se de ação penal privada, necessitando de advogado - explica o promotor que a atua no Núcleo de Enfrentamento à Discriminação do MPDFT.
- A legislação infraconstitucional permite que o enquadramento jurídico dificilmente ocorra como crime de racismo e, com freqüência, se dê como crime de injúria - avalia o primeiro ministro negro a fazer parte de uma corte superior, Carlos Alberto Reis de Paula, do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
- É uma legislação anacrônica e ineficiente. A Constituição afirma que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão. A Lei Caó descreve o que seriam essas condutas racistas, mas é pensada para hipóteses de ódio racial em contexto de pregação de segregação aberta e possivelmente violenta, do tipo Ku Klux Klan (organização racista dos Estados Unidos), de racismo explícito - critica o pesquisador universitário de Direito no Distrito Federal, Douglas Martins.
De acordo com ele, o racismo praticado no Brasil é outro.
- Tirando o período da escravidão e os primeiros anos da República, essa prática [explícita] é tida como marginal no racismo brasileiro. Nos dias de hoje, a coisa fica por conta de 'cyber-criminosos' e quadrilhas do tipo neonazista, que cultivam o ódio como forma de vida. Coisa de gente doente mesmo. Há muito tempo o DNA do nosso racismo é outro. Praticamos um racismo de tipo implícito, insidioso, invisível, cínico e dissimulado - argumenta.
Segundo Douglas Martins, é por isso que o número de autuações e condenações criminais por racismo no Brasil é pífio.
- Ninguém vai parar na cadeia por prática racista porque ninguém se acha racista. E o pior: todo mundo acha que ninguém é racista. No Brasil, você não vê o racismo. Só sente, diz o professor.
Para o diretor executivo do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), Hédio Silva, se praticar racismo no Brasil não "dá cadeia", pode gerar punição e condenação.
- A pessoa pode, sim, perder sua primariedade. Obviamente, uma condenação criminal é obstáculo para a pessoa exercer diversas atividades - avalia o diretor que há 30 anos milita contra a discriminação racial e foi secretário de Justiça do Estado de São Paulo.
Hédio elogia a legislação brasileira, mas faz ressalvas - Ela é satisfatória porque existe uma legislação penal e uma civil prevendo ações indenizatórias por dano moral ou material. Tem também as leis trabalhistas que, com alguns ajustes pontuais, constituem um instrumental jurídico que permite o enfrentamento deste grave problema.
Os quatro entrevistados pela Agência Brasil sugerem mudanças na legislação que trata dos crimes de racismo.
- As duas leis, separadas, causam confusões tanto jurídicas quanto relativas à sua aplicabilidade. Seria positivo todas as formas de punição de descriminação racial estarem compreendidas apenas na Lei Caó, extinguindo de vez o instituto da injúria com elemento racial, destaca Luiz Fernando.
- Quanto ao ônus da prova, há de se estabelecer um critério radicado no princípio da aptidão para a prova, uma vez que freqüentemente a pessoa discriminada terá muitas dificuldades de fazer prova suficiente para o convencimento do julgador - aponta o ministro Carlos Alberto Reis.
Douglas Martins vai além e defende que - a legislação adote a inversão do ônus da prova, não cabendo à vítima, mas à instituição ou ao acusado, demonstrar que não se omitiu e nem cometeu a prática discriminatória.
Para o promotor Libanio Alves Rodrigues, a maneira como a lei define ilícitos de racismo deveria se aproximar do formato da lei de entorpecentes, para melhor definir suas possibilidades.
- É necessário que seja feita uma revisão, de forma a moldar capitulações e condutas que caracterizam o crime de racismo à realidade nacional.
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