quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Confissões africanas

Michel Leiris e três momentos da missão: a ´tourada´ africana; o grupo de pesquisa-dores; e as máscaras rituais

Em ´A África Fantasma´, o poeta Michel Leiris funde literatura, memorialismo e antropologia em uma luta contra o esquecimentoTransdisciplinaridade e interdisciplinaridade são palavras que se vêem ameaçadas de perda de sentido, tão freqüente é seu uso nos meios acadêmicos. Não obstante, a universidade parece caminhar no sentido inverso, cada vez mais segmentada, com especialistas cuidando de temas bem delimitados, encerrados nesta ou naquela disciplina. Neste cenário, é cada vez mais remota a aparição de intelectuais da estirpe de Michel Leiris (1901 - 1990).

Sua produção transita pelos terrenos da poesia, da literatura memorialística e dos estudos antropológicos. O que Leiris tem de único é a capacidade de encontrar e criar zonas de intercessão entre estas linguagens. É o que comprova a leitura de suas obras mais conhecidas: “Espelho da tauromaquia”, estudo sobre as touradas, de 1938; e “A idade viril” (1939), “etnologia do eu” que reuniu uma série de textos autobiográficos. Mas foi em “A África Fantasma” (1934) que inaugurou o polêmico procedimento.Rito de passagemNascido em Paris, Michel Leiris viveu de perto as agitações culturais de sua cidade na primeira metade do século XX.

Como poeta surrealista, lançou as coleções de poemas “Simulacre” (1925) e “Le Point Cardinal” (1927) - ambos inéditos em português. No final dos anos 20, rompeu com o Surrealismo e, ao lado do também escritor George Bataille (autor de “História do Olho” e “O Erotismo”) fundou a revista “Documents”. Sem abandonar de todo as idéias de Breton & Cia., a publicação abria-se para discussões a respeito da cultura de um ponto de vista mais científico. Nela, Leiris deu seus primeiros passos em direção aos estudos antropológicos, que dominariam sua produção até o fim da vida.“A África Fantasma” é o registro deste ponto de mutação. Publicado, pela primeira vez, em 1934, o livro traz a íntegra dos diários mantidos por Michel Leiris entre 1931 e 1933, no período em que participou da missão etnográfica de Dacar-Djibuti, pioneira francesa na exploração científica do continente africano. Leiris ocupou o cargo de secretário-arquivista na missão liderada pelo antropólogo Marcel Griaule. É verdade que, a esta altura, Leiris já tinha escrito pelo menos uma dezena de ensaios sobre cultura. Entretanto, foi com a excursão de Griaule que deixou de lado a teorização de gabinete e vivenciou o rito de iniciação da Antropologia, a experiência do campo.

Rupturas
No momento de sua publicação, “A África Fantasma” foi recebido de forma acalorada. Griaule , ciente do lugar destacado de sua missão na história da antropologia francesa, rejeitou o livro. O sociólogo Marcel Mauss, um dos pilares das ciências sociais, ex-professor de Leiris, também criticou a obra - considerando-a um “desserviço” ao desenvolvimento da etnografia da África. O que incomodou Griaule e Mauss foi, precisamente, aquilo que hoje se considera a principal contribuição de Michel Leiris para a disciplina antropológica.Em seus estudos, imprimiu abertamente sua marca, seus traumas e as questões que o perturbavam em nível pessoal.

Em seus escritos concebidos como autobiográficos, recuperou passagens de suas pesquisas de campo, como forma de explicar a si mesmo e aquilo que estudava. Desta forma, Leiris acabou produzindo uma obra literária atípica e, com freqüência, de qualidade acima da média.Ao mesmo tempo, antecipou a chegada da ciência a um momento difícil de definir, em que suas certezas decompõem-se e novas são procuradas.

Dellano Rios Repórter
DIÁRIO
"A África fantasma"Michel Leiris
684 páginas
Cosac Naify2008

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