sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Repensar o anti-racismo

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Como funciona a ideologia racista? Quais são os seus laços com o nacionalismo, a xenofobia e o autoritarismo? Quais são os obstáculos que o anti-racismo deve evitar na sua luta contra esse inimigo da democracia pluralista? A seguir, alguns dados para reflexão pelo especialista francês no assunto, Pierre-André Taguieff.

Racismo, uma violência que atinge a integridade da pessoa.

O pensamento racista repousa no postulado da fixidez da “essência” ou da “natureza” que todo indivíduo humano possuiria em razão de seu “nascimento”, ou pelas suas origens, colocadas como primárias ou determinantes. A unidade da humanidade está despedaçada, fragmentada em “categorias essenciais” entre as quais não existe em princípio nem portas, nem janelas, nem pontes. O racismo funciona como método de dissociação: ele separa e diferencia, antes de classificar segundo uma ordem hierárquica. Assim, ele fabrica seres “assimiláveis” e “inassimiláveis”.

É apenas quando conjuga uma ideologia política capaz de provocar mobilizações – como o nacionalismo – que o racismo doutrinal comporta normas e prescrições. Ele estimula a "limpar" ou a "purificar" a sociedade dos elementos "indesejáveis" que ela contém, a manter à distância determinadas categorias de população, a proibir-lhes o acesso a um ou outro status social e a uma ou outra profissão. Podemos reconhecer o racismo por seus efeitos, suas conseqüências, diretas ou indiretas: discriminação, separação ou segregação, subordinação e eliminação.
Desde o final do século XIX, o racismo vem se manifestando de maneira predominante sob a forma de nacionalismo. Ele surge primeiramente no nacionalismo xenófobo clássico visando preferencialmente o país vizinho e em seguida nos etno-nacionalismos contemporâneos que rejeitam as minorias e os "imigrantes", considerados perigosos para a identidade ou a homogeneidade do povo dominante, ou para a ordem interna e até mesmo a soberania do Estado-Nação.

Parece portanto ser necessário que a luta contra o racismo leve em consideração esses vetores privilegiados do racismo que são as mobilizações nacionalistas, tenham elas o apoio dos Estados-Nações existentes, ou fortaleçam-se contra estes últimos assumindo a forma de micro-nacionalismos separatistas.


As frentes anti-racismo

Durante os anos 80 e 90, o anti-racismo à francesa redefiniu-se por uma luta em duas frentes: por um lado, a luta contra a extrema direita política; por outro lado, uma mobilização em favor dos “imigrantes” ou de certas categorias de “estrangeiros” (de origem extra-européia) vistos como vítimas reais ou virtuais do “racismo”. Rapidamente, no entanto, a estratégia ofensiva visando a extrema direita passou à frente da estratégia defensiva, centrada no objetivo de oferecer ajuda e proteção aos “imigrantes” vitimados.

Desde 1984-1985, essa estratégia predominantemente midiática, que combinava ataques políticos cada vez mais radicais a uma indignação moral encarnada pelos cantores de música popular, jornalistas célebres, atores, etc., escapou dessa forma da esfera de influência das organizações antigamente especializadas na luta contra o racismo, o anti-semitismo e a xenofobia.

As representações anti-racistas do racismo, na França em particular, constituíram-se , desde a Segunda Guerra Mundial, em reação contra o nacional-socialismo hitleriano (simbolicamente reduzido ao anti-semitismo exterminador que ele encarnou e colocou em prática). É por isso que o discurso anti-racista contemporâneo é amplamente tributário do anti-fascismo histórico – que seria mais correto chamar de “anti-nazismo” – enquanto que os regimes combatidos pela propaganda anti-fascista desapareceram há mais de meio século.

Ora, é necessário empenhar-se em reconhecer e conhecer a novidade dos processos e das mobilizações que são considerados perigosos para a democracia pluralista. Trata-se hoje, no mais das vezes, de reações de identidade (de base étnica, com predominância lingüística ou religiosa), provocadas ou favorecidas pela globalização selvagem e dirigidas seja contra um ou outro aspecto desta (uniformização, perda de soberania dos Estados, desestruturação do laço social, precarização, etc.), seja contra os Estados nacionais existentes.

O anti-racismo contemporâneo, ao se reinscrever na tradição anti-fascista (sem no entanto repensá-la), recentrou-se portanto em um combate ultra-midiatizado contra a extrema direita. Como a extrema direita parecia agradar mais ao “povo” do que às elites, esse anti-racismo na verdade ilustra de fato o anti-populismo das elites da cultura e dos meios de comunicação. Ora, se o “populismo” abre espaço para os desvios demagógicos ou autoritários, ele constitui também uma dimensão da democracia moderna: a soberania do povo. Assim, os anti-racistas reconvertidos em “anti-nacionalistas” e anti-populistas não podem logicamente deixar de concluir por uma rejeição ao princípio de soberania nacional e popular, e preferem, definitivamente, seja voltar ao velho internacionalismo revolucionário, seja precipitar-se numa utopia da globalização resplandecente.

O anti-racismo dos anos 50 a 70, ao contrário, era regido pela convicção de que as “teses racistas” representavam erros devidos à ignorância ou ao poder dos preconceitos, erros que os cientistas podiam e deviam corrigir, depois de havê-los denunciado. O anti-racismo era definido de maneira ideal como a continuação do combate das luzes contra as trevas da ignorância ou as idéias preconcebidas. O anti-racismo científico englobava um ideal relativo ao humanismo racionalista (como demonstra a missão da UNESCO): através da instrução e da educação, fazer com que advenha um mundo onde o racismo não sobreviva senão sob a forma de um arcaísmo, de uma marca do passado. Essa fé no enfraquecimento futuro do racismo parece ter perdido a força.

A transformação recente do anti-racismo em anti-nacionalismo, ou até em “anti-nacionismo” e anti-populismo favoreceu, ao longo dos anos 90, a tendência a se recorrer exclusivamente à sanção judicial. Essa redução do racismo à delinqüência reforçará a tendência a explicar os comportamentos ou as atitudes dos outros quando as achamos condenáveis por serem ditadas por predisposições “naturais”, ao invés de serem supostamente explicáveis por fatores de situação (inculcação precoce de preconceitos, instrução insuficiente, situação de concorrência pelo emprego, etc.). Porque ninguém é de “extrema direita” por natureza.

O que fazer?

Nenhum democrata coloca em questão o princípio de que uma democracia constitucional deva defender-se contra seus inimigos, inclusive e sobretudo contra os que não aceitem respeitar provisoriamente a legalidade senão com vistas a ganhar as eleições e em seguida destruir o regime democrático. Inúmeros agrupamentos denunciando violentamente a democracia parlamentar puderam assim jogar, no século XX, o jogo da democracia parlamentar dentro de uma perspectiva tática.

O conflito começa quando se coloca a questão a respeito dos meios de se combater os inimigos da democracia. Quem tem autoridade para distinguir os partidos “democráticos” dos partidos “anti-democráticos”, e com base em que critérios? Ou como definir, de uma maneira ao mesmo tempo objetiva e consensual, a extremidade política intolerável?

Se considerarmos que a extrema direita constitui em determinados aspectos uma ameaça para as liberdades fundamentais, o recurso a formas de repressão judicial é justificado. É preciso ainda levar em consideração a natureza política do movimento considerado perigoso para a democracia pluralista, e, conseqüentemente, inscrever a ação judicial no âmbito mais amplo da luta política. Resta que, diante de um adversário político, nem tudo é permitido no âmbito de uma democracia constitucional. O reconhecimento do direito do adversário de existir, essa preciosa invenção moral do pluralismo político moderno, deve ser mantido.

Trata-se também de evitar restabelecer, em nome da luta contra os propósitos racistas, o delito de opinião, em contradição aos pressupostos da democracia constitucional, que implica principalmente no princípio do pluralismo e condena conseqüentemente a própria idéia de “delitos políticos”.

O resultado é que o combate ao racismo deve ser multiforme e realizar-se em diversas frentes: luta intelectual, educação, ação sobre as causas sociais e econômicas, sanção judicial e ação política. Em matéria de anti-racismo, como em qualquer outra, a arma absoluta não existe .
Pierre-André Taguieff Filósofo, cientista político e historiador,diretor de pesquisa do CNRSe professor conferencista do IEP de Paris*

*Centro Nacional de Pesquisa Científica e Instituto de Estudos Políticos.

Referências bibliográficas
• La Société française face au racisme (A sociedade francesa diante do racismo), de Claude Liauzu, Editora Complexe, Paris, 1999.

• Face au Front national. Arguments pour une contre-offensive (Diante da Frente Nacional. Argumentos para uma contra-ofensiva) de Pierre-André Taguieff em colaboração com Michèle Tribalat, Editora La Découverte, Paris, 1998.
• Le Racisme, une introduction (O racismo, uma introdução), de Michel Wieviorka, Editora La Découverte, Paris, 1998.
• Le Racisme (O racismo), de P.-A. Taguieff, coleção Dominos, Editora Flammarion, Paris, 1997.
• Racisme et xénophobie en Europe, une comparaison internationale (Racismo e xenofobia, uma comparação internacional), de Michel Wieviorka, Editora La Découverte, Paris, 1994.
• Face au racisme (Diante do racismo), sob a direção de P.-A. Taguieff, Editora La Découverte, Paris, 1991 (e Editora O Seuil, 1993). • La Force du préjugé. Essai sur le racisme et ses doubles (A força do preconceito. Ensaio sobre o racismo e seus confêneres), de P.-A. Taguieff, Editora La Découverte, Paris, 1988 (e Editora Gallimard, coleção "Tel", 1990) ; tradução americana, University of Minesota Press, início de 2000.

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