terça-feira, 16 de setembro de 2008

Entrevista: Lila King detalha impacto da web no jornalismo da CNN

Em 16 de abril de 2007, o sul-coreano Seung-Hui Cho adentrou o campus da Universidade Virginia Tech empunhando duas armas. Na próxima hora e meia, a ação de Cho resultou em 23 feridos, 32 mortos e no seu suicídio. O desespero dos pais e a histeria da mídia na cobertura do caso promoveu informações desencontradas logo após o início do massacre.

A primeira informação concreta sobre a quantidade de tiros dados por Cho chegou à mídia na forma de um vídeo de 1 minuto e 15 segundos feito por um estudante da universidade em seu telefone celular. Na filmagem, tremida pelo misto de nervosismo com vento forte, ouvem-se sucessivos tiros no campus da Virginia Tech.

O vídeo foi publicado pelo seu autor, Jamal Albarghouti, no iReport, serviço de jornalismo cidadão criado pela CNN em agosto de 2006 como um canal para que leitores, telespectadores e ouvintes do conglomerado de comunicação publicassem coberturas do trivial, como condições metereológicas, tragédias, como o tsunami na Ásia ou enchentes nos Estados Unidos, passando pela morte de celebridades ou tensões militares entre nações.

Mais de dois anos após ser lançado, o iReport supera 100 mil usuários ativos e acumula uma média de 150 mil conteúdos amadores, entre relatos por texto, fotos ou vídeos. Em visita ao Brasil para o MediaOn, a produtora sênior do CNN.com e criadora do iReport, Lila King, conversou com o IDG Now! sobre as contribuições de leitores e como os jornalistas integram o material no noticiário.

Como nasceu a idéia do iReport dentro da CNN?A idéia veio aos poucos, por diferentes motivos, mas ganhou força após o tsunami na Ásia (em dezembro de 2005), quando vimos que não poderíamos colocar um repórter sentado esperando que a notícia acontecesse nos lugares onde houvesse notícias.

A popularização de câmeras e filmadoras digitais nos fez entender muito rápido que as pessoas tinham a habilidade de não apenas escrever, mas também contar suas histórias com fotos e vídeos por meio de tecnologia que usamos diariamente. O iReport nasceu desta concepção e conseguimos colocar o serviço no ar em 2006.

Foi desta maneira (pelas lentes cidadãs) que vimos a tragédia (do tsunami) - não era de repórteres caminhando pela praia, mas de pessoas da região que tinham câmeras e estavam documentando os locais. Foi uma história enorme e totalmente impactante que teve como fonte principal os registros dos "leitores".

Qual foi a contribuição mais importante dentro do iReport?
É difícil dizer qual o mais importante já que são recebidos milhares de novos conteúdos por dia no iReport, mas o provável momento de maior assombro e que mostrou que o serviço é uma ferramenta muito valiosa foi logo após o tiroteio na faculdade Virginia Tech. Esta foi a primeira história em que tivemos um vídeo exclusivo que nos ajudou a mostrar o que realmente estava acontecendo no campus e rapidamente se tornou o pedaço de informação central da cobertura.
Todas as organizações cobrindo o caso estavam ainda tentando descobrir quantos e aonde tiros haviam sido dados - o vídeo do iReport, feito com um celular fora da sala de aula, nos mostrou que o massacre foi maior do que esperávamos. Este foi o momento em que a nossa indústria de notícias acordou e percebeu o potencial daquela ferramenta. A CNN licenciou clipes da filmagem e distribuiu gratuitamente entre outras emissoras cobrindo o assunto.


Quanto conteúdo amador vocês recebem por dia no iReport?
Ontem (terça-feira, 09 de setembro), vi que tínhamos recebido cerca de 1.100 histórias, entre contribuições na forma de uma foto, um conjunto de fotos, um vídeo, uma série de vídeo, um texto. Existem mil maneiras de se contar uma história e na internet você pode se aproveitar do aspecto multimídia. Mensalmente, recebemos 15 mil histórias, em média

Como vocês organizam este conteúdo?
A comunidade se organiza. O site conta com ferramentas para que haja classificação por tags ou assuntos, para que o internauta dê notas, escreva comentários ou vote na história para que ela apareça na capa do iReport.

É claro que também existem os produtores e jornalistas da CNN que trabalham com o conteúdo diariamente para checar que histórias podem ser usadas em matérias do canal. Treinamos centenas de jornalistas de todo o conglomerado (que inclui o CNN.com, os canais de TV CNN e CNN International e rádios homônimas) para que elas tivessem acesso às contribuições do iReport.
Temos um time de 9 pessoas na CNN.com responsável por gerenciar o conteúdo publicado e fazer novas perguntas à comunidade, mas fizemos um esforço para distribuir as ferramentas pela rede (da empresa) já que não havia jeito de imaginar que apenas um pequeno time conseguisse analisar as milhares de histórias mensais e as usassem como parte do noticiário.
Tornou-se também parte da nossa rotina diária dentro da redação: toda manhã, quando editores de toda a empresa se juntam para discutir o que está sendo feito, o iReport é trazido à mesa. Discutimos a apuração de notícias nacionais, internacionais e passamos por cima do que está acontecendo no iReport.

Foi difícil treinar jornalistas acostumados com o papel?
Não sei se chamaria de difícil, já que depende do perfil do jornalista. Acho que é natural (enfrentar resistências). Estamos, de uma certa maneira, "ofendendo" o jornalismo tradicional, algo que deixará muitos em uma situação desconfortável.
Mas você acaba convencendo uma pessoa por vez quando consegue demonstrar as possibilidades do iReport, mostrando diferentes perspectivas ou materiais que podemos usar a partir da contribuição no serviço. Quando fazemos estes treinamentos, a primeira coisa que citamos é o jornalismo e a importância de checar fatos e fazer as mesmas verificações no iReport que faríamos em qualquer outro conteúdo dentro do conglomerado.

Vocês têm problemas com plágio ou informações não corretas?
Para ser honesta, não é algo que temos muitos problemas e não é surpresa para mim a qualidade média do conteúdo publicado no iReport. Acontece muito raramente descobrir durante a seleção que determinada história tem problemas. O que mais acontece durante a verificação é percebermos que a pessoa não teve treinamento profissional e pode ter sido ingênua na redação ou na edição.
Aconteceu recentemente com um usuário na Flórida que tirou fotos de uma tempestade e aplicou mais contraste no PhotoShop, que tinha acabado de comprar. Percebemos que havia algo não real na imagem e um dos produtores ligou para ele, que admitiu que tinha colocado mais contraste na foto enquanto aprendia a mexer no programa. Ele mandou a versão original e nós explicamos que no fotojornalismo não se faz edições deste tipo, já que a imagem tem que estar o mais próximo possível da realidade. No fim, a técnica de jornalismo do leitor melhorou.
Não posso ter certeza que não vi algo do gênero no iReport, mas nossa comunidade começou a desenvolver uma paixão forte pela qualidade do que está no site. Com bastante freqüência, vemos usuários que publicam conteúdo e atraem a atenção de outros usuários que já conhecem aquela informação ou aquela foto e chama a atenção de quem "copiou".

Existe uma relação entre o número de relatos, fotos ou vídeos recebidos no iReport e os usados dentro do noticiário da CNN?
Varia sempre de mês para mês e depende também do assunto, mas, na média, usamos cerca de 10% do que recebemos tanto na TV como na CNN.com, com o aproveitamento em histórias significativas quando existe uma contribuição maior da comunidade. No caso das enchentes que atingiram os Estados Unidos há uma semana, recebemos muitas fotos, relatos e vídeos de habitantes ilhados e usamos cerca de 60% do material.

Você falou muito sobre tragédias nos exemplos de sucesso do iReport - o tsunami na Ásia, o tiroteio em Virginia Tech e as inundações nos Estados Unidos. Existe um perfil médio de notícias que inscritos no iReport costumam publicar?
Você está certo, falamos muito sobre tragédias. Mas se você olhar para duas das nossas histórias mais populares no iReport, verá que ambas não têm relação nenhuma. Nós pedimos opiniões em vídeo sobre a escolha de Sarah Palin para ser candidata a vice-presidente dos Republicanos nas eleições norte-americanas e esta história se tornou a mais comentada da história do serviço. Outro destaque foi quando pedimos que as pessoas publicassem fotos dos seus ambientes corporativos.
É difícil de comparar as duas coisas. Acho que o ponto comum entre ambas é que se tratavam de assuntos populares quando foram publicadas - na semana do segundo exemplo, tínhamos um especial sobre ambiente corporativo no CNN.com.
No setor de apuração de notícias, o mais popular diz respeito ao clima, afinal é algo que está disponível para todos, faz parte do noticiário e tem um impacto direto na vida das pessoas. Mas o que é mais importante...

Existem planos de repartir receita com usuários do iReport caso o conteúdo seja interessante o suficiente para ser vendido para terceiros?
Atualmente, não pagamos nada pela contribuição. Não temos um plano agora para o compartilhamento de receita, mas mudamos os termos de serviços do iReport há três semanas para indicar que, caso vendermos o conteúdo para uma empresa jornalística não afiliada à CNN, nós dividiremos o investimento com o "jornalista".

Jennifer Martin, diretora de relações públicas da CNN: É um "chute" meu, mas é provável que a venda de conteúdo do iReport aconteça quando for um assunto realmente relevante, como o impacto que, por exemplo, o vídeo do tiroteio em Virginia Tech teve. Imagine que alguém consiga registrar em vídeo...

O Pé-Grande...
Sim, mas de verdade. A gente vai vender o conteúdo e dividir totalmente a receita (proveniente da venda do vídeo) com o "iReporter". É o mais justo, afinal estaríamos ganhando dinheiro baseado em conteúdo alheio.

Baseado na sua experiência no iReport, você concebe um serviço que use o jornalismo cidadão como modelo de negócios, em uma espécie de agência de notícias amadora?
Da minha perspectiva, uma das razões para o sucesso do iReport é uma mistura entre o jornalismo cidadão e o jornalismo profissional. Ambas as atividades juntas fazem o noticiário ser melhor, mais interessante, mais correto e mais relevante. Existem duas metades que devem ser usadas juntas.

Não descarto a idéia de alguém descobrir um modelo comercial que se sustente apenas por jornalismo cidadão, mas acredito que o que torna o iReport único e efetivo é que ele mescla o jornalismo cidadão com o rigor e os padrões do jornalismo tradicional. Juntos, ambos contam uma história melhor.
Publicado por Guilherme Felitti, às 07h00

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