Narrativas: uma trama etnográfica mais sensível
Uma trajetória em narrativas KOFES, Suely. Campinas: Mercado de Letras, 2001. 192 p
O livro Uma trajetória em narrativas tem a virtude da narradora (no sentido benjaminiano da palavra), que vai a Goiás Velho procurar nos becos da memória alguém que foi esquecida e que reaparece alhures sob a forma de uma bruxa, reclusa no tempo e no espaço.
Meu primeiro contato com a história de Consuelo Caiado não foi sólido como o que agora tenho nas mãos, mas permaneceu denso e impactante, não só para mim mas também para a platéia heterogênea que atentamente ouvia Suely Kofes e imaginava a personagem, seus enredos e seus múltiplos significados.
O fio condutor do livro é a história de Consuelo Caiado, uma mulher que ocupou a cena pública na antiga capital de Goiás e que foi esquecida, tornando-se uma 'lembrança privada' nas conversas, pelo menos até a chegada da autora do livro na cidade.
Kofes encontra o fio da meada em Campinas (SP), quando escuta uma narrativa quase mítica sobre uma renunciante, auto-reclusa. Ao longo do livro ela nos conduz através de relatos, monumentos, anotações, relatórios, resistências, descrições, jornais, enfim, de um trabalho arqueológico dos saberes, fazeres, do tempo e do 'clima' da época. Representações que retratam o contexto da existência de Consuelo Caiado pré e pós- reclusão. Surge então a história de uma menina, nascida de uma família tradicional de Goiás, fruto também de um matrimônio entre dois mundos: o rural oligárquico, áspero, distante, de um coronelismo agreste, onde imperava seu pai;1 e o mundo polido, civilizado, requintado, aristocrático, que gerou sua mãe no final do século XIX. A mãe sucumbe às agruras do sertão e Consuelo, e duas irmãs são criadas no ambiente de seus avós maternos, recebendo a primeira formação em colégios franceses do Rio de Janeiro. Na adolescência, ela retorna ao mundo rural de seu pai e madrasta na adolescência, onde fará sua formação profissional como farmacêutica e construirá uma trajetória de atuação feminista, científica e memorialística, marcando também presença social e política a ponto de ser apontada como a 'Totó Caiado de saias'.2
A partir daí a autora narra a trajetória de vida de uma mulher sui generis que deixou vestígios de comportamentos e atitudes surpreendentes, fatos que vão sendo desvelados e compreendidos pela trama paralela do trabalho investigativo da pesquisadora.
Kofes abre o texto descrevendo os personagens que atuarão na trama e seu cenário, mostrando ainda as questões que ordenaram o trabalho, seus pressupostos orientadores, apresentando os autores com quem dialoga. Busca inspiração em uma abordagem, se posso dizer assim, etno-biográfica, como por exemplo os trabalhos de Herbert Baldus e Darci Ribeiro.3 Ao longo do texto pontua também as questões relativas ao gênero relevadas "na tentativa de compreender a trajetória de Consuelo e ordenar o que seria sua experiência" (p. 15). Kofes dialoga no decorrer do livro com autores do campo da antropologia, como Claude Lévi-Strauss, Pierre Bourdieu, entre outros, e, no que diz respeito a gênero, principalmente com Marilyn Strathern. Traz também para o seu texto contribuições da literatura, da história, da sociologia e, no que tange à teoria sobre narrativas, basicamente dialoga com Paul Ricoeur.
A autora recusa o rótulo de "biógrafa de uma mulher excepcional", afirmando que
Nem é biografia, nem compartilho o pressuposto de trajetórias excepcionais, nem considero 'mulher' uma identidade fixa. Aliás, no caso, é exatamente na ambigüidade de uma 'identidade de gênero' onde situo a experiência de Consuelo (p. 15-16).
No primeiro capítulo, intitulado "Itinerário, em busca de uma trajetória", a autora descreve e discute os instrumentos teóricos que lhe permitirão buscar "uma interconexão de temporalidades" em um "agora" e uma "inter-conexão de lugares" em um "aqui" (p. 19) no tempo do trabalho antropológico. Nesse capítulo, Kofes busca compreender os significados da reclusão de Consuelo, compondo uma trajetória esboçada através do que ouviu, viu e leu, assim como as perdas e transformações contidas nas fontes em si e nos diálogos entre elas. A abordagem biográfica vai conduzindo o leitor, já seduzido pela qualidade do texto, a um clima de mistério, onde as questões sobre a reclusão, o esquecimento, a invisibilidade vão sendo desveladas, ainda que sempre sugerindo a existência de outros véus.
Kofes, em certa medida, torna-se um sujeito na trajetória que busca compreender, tecendo enredos como narradora ao mesmo tempo que desconstrói tramas urdidas por valores e pelo poder da escrita, tanto no campo da memória da cidade de Goiás quanto no campo da própria antropologia.
Explicitando seu ângulo de avaliação, a autora descreve a metodologia de seu trabalho da seguinte maneira:
O foco sobre uma singularidade, no caso uma trajetória, revelou várias relações, permitindo que a pesquisa guardasse na intuição biográfica um procedimento etnográfico: orientada pelas perguntas sobre Consuelo Caiado fui seguindo seus caminhos, e o que ouvi e encontrei foi sobre muitas outras coisas. Trata-se agora de escrever sobre esse encontro, entre um itinerário de pesquisa e a trajetória de um sujeito pesquisado (p.23).
O segundo capítulo, intitulado "Etnografia, em tramas: pessoa, personagem, atos, fatos, lugares e tempos", abre-se com o cenário da morte de Iracema Caiado, mãe de Consuelo, noticiada pelos jornais locais. A partir daí vão se abrindo os cenários que são descritos, incluindo fatos do contexto histórico, geográfico, político, social, econômico e cultural da trajetória de Consuelo. Outra parte desse capítulo se concentra em documentos e relatos centrados em Consuelo. Enfatiza principalmente sua formação na Faculdade de Farmácia e a atuação em três espaços: o Gabinete Literário, espaço cultural eminentemente feminino; o conselho editorial do jornal feminino O Lar; e a associação Sociedade para o Progresso Feminino. É nesses espaços, ou melhor, nas pistas deixadas por eles que Suely Kofes encontra preciosas informações sobre "Consuelo: pessoa e personagem nas tramas" e sobre o contexto que a cercava.
A última parte desse capítulo apresenta relatos que cruzam o esforço de esquecimento, menosprezo e ocultação das marcas de Consuelo na cidade com fatos garimpados pela autora em diferentes relatos, documentos e outros registros como mapas e fotos que localizam o leitor no ambiente da trama. Nessa parte final a autora começa a tecer o fio que alinhava o gênero com a cultura, a política e a memória que esquece Consuelo.
No terceiro capítulo a autora investiga o feminismo na década de 1920 e início dos anos 1930 em Goiás Velho, período em que a atuação de Consuelo foi mais significativa. Através de cartas e artigos do jornal O Lar, a autora apresenta as questões, as representações e os valores de masculinidade e feminilidade evidenciados nas "inscrições objetivadas" (p. 22) e nos relatos orais de pessoas contemporâneas de Consuelo.
O quarto capítulo volta à questão teórica da narrativa, seu emprego, sua importância, seus limites e suas formas. A autora agrupa as narrativas sobre Consuelo em três grupos: a) contos de bruxa; b) ausência de enredo (esquecimento e/ou recusa do relato); e c) histórias sobre Consuelo (longas narrativas que recriam a trajetória da personagem central da trama). Nesse capítulo a autora delineia o contraponto entre duas construções de feminilidade, a partir das memórias de Cora Coralina4 e de Consuelo.
No quinto capítulo Kofes constrói uma etnografia onde interpreta e costura todas as informações que obteve. Refaz a trajetória de Consuelo marcando suas características de deslocamento familiar, social, cultural, político e de gênero, pontuando a especificidade de sua experiência de duplos pertencimetos (Rio de janeiro/Goiás, masculino/feminino: Totó de Saias). Nas palavras da autora, "Este situar dilacerado não poderia qualificar essa experiência como estrangeira? Não é como estranha que falam dela quase todas as narrativas?" (p. 171).
No capítulo final, a autora analisa a herança familiar de Consuelo e as narrativas sobre ela: alguém que foi impedida duplamente de conquistar sua herança política – tanto pela rigorosa fronteira de gênero existente na sua época (exemplarmente demonstrada a partir da análise do jornal O Lar, no capítulo 5) quanto por ter perdido a herança familiar com a morte da mãe. Não se tornou um 'coronel de saias' nem era 'uma flor'; permaneceu representante e prisioneira de um tempo passado, no qual se refugiou.
No que tange ao estilo, inteligente e sensível, o texto é quase literário, com inserções teóricas que lhe garantem o estatuto de uma tese de livre-docência. Sua argúcia e erudição tornam a leitura instigante e profunda. O olhar antropológico da autora desvenda ricos itinerários de pesquisa pouco explorados na antropologia brasileira. Kofes abusa de narrativas longas, obrigando-nos a partilhar do contexto dos relatos,5 e a freqüência com que usa esse recurso pode se transformar em um ponto vulnerável de sua bela escritura.
Finalmente, penso que a autora ilumina a natureza relacional e de construção permanente que envolve o gênero na sua articulação com a memória, com a construção da noção de pessoa e com as contingências histórico-político-culturais. Dificilmente, ao conhecer a trajetória de Consuelo Caiado pelas palavras de Kofes, alguém se esquecerá dela.
1 Dr. Antônio Caiado, advogado, senador, chefe político regional. 2 Apelido do pai de Consuelo. 3 Os trabalhos são, respectivamente, O professor Tiago Marques e o caçador Aipoboreu e Uirá sai à procura de Deus. 4 A autora insere dados sobre Cora Coralina a fim de comparar duas feminilidades, uma hegemônica, desejada e marcada pela memória, outra estigmatizada e esquecida pela memória social. 5 Não sem apontar para a importância desses contextos, como demonstra na citação de Hamlet por Bourdieu, p. 23-24.
BERNADETTE GROSSI DOS SANTOS Universidade do Amazonas
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